terça-feira, 15 de maio de 2012

Redução da maioridade penal


         Texto apresentado na aula do dia 03/04/12
         Por Artemisa Teixeira Paiva e Natália de Castro Zacariotti  

         Atualmente, um dos problemas mais preocupantes observados por habitantes é o aumento acelerado da criminalidade. Infrações cometidas contra os seres humanos com a utilização de diversos requintes de crueldade, configurando crimes bárbaros - que antes chocavam a população por muito tempo - estão como que sendo produzidos em série, no século XXI, mostrando-se como uma situação deveras preocupante.
          Observa-se, por exemplo, a partir dos dados do Instituto Brasil Verde, que o índice de crimes cometidos por adolescentes de 12 a 18 anos no Estado de São Paulo aumentou de 6,1 por cem mil habitantes em 1950 pra 112,5 em 2002, havendo um predomínio de crimes qualificados como roubos e furtos. No ano de 2011, dos 345 mil brasileiros que cumprem algum tipo de pena, 17,4% são crianças e adolescentes com menos de 18 anos ( Dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República -SDH).
            Casos como o do menino João Hélio, barbaramente arrastado em um carro roubado por bandidos dos quais um era menor de idade, com 16 anos, reacendem o debate em torno da redução sobre maioridade penal. Nessa perspectiva e somando-se as estatísticas a constante divulgação pela mídia, constrói-se a ideia de uma solução simplista como uma medida óbvia a ser implementada para que se tenha resultados imediatos: a redução da maioridade penal. Os defensores dessa vertente, baseados no fato de que, hoje em dia, a maioria dos crimes cometidos por menores de idade são efetuados por indivíduos de 16 a 18 anos afirmam que devido ao fato de o contexto da criação da lei ter sido tão diferente das atuais condições sociais, faz-se necessária uma revisão urgente do código civil brasileiro no que concerne a imputabilidade penal. Atualmente, a maioridade penal começa no momento que um adolescente passa a responder por seus atos como um cidadão adulto. Fixou-se, no artigo 228 da Constituição Federal, a data de 18 anos como parâmetro de qualificação do infrator.
          Levantam-se, porém, questões polêmicas sobre os critérios usados para que se use essa data limite e indagações como as de que um jovem poderia ter com um dia de diferença a real mudança de mentalidade acarretando em uma furtiva aquisição de maturidade e responsabilidade?
          Há a crença, por parte grande parte dos cidadãos, de que se os jovens possuem capacidade de discernimento suficiente até mesmo para gozarem do direito facultativo ao voto-Artigo 14, Parágrafo 1º-são capazes de arcarem com as consequências das suas ações incorrendo em possíveis atos ilícitos. O que não é percebido pelos defensores da redução é o fato de que o processo político proporciona uma contribuição para o amadurecimento destes jovens, pois lhes permite adquirir uma responsabilidade no que concerne ao futuro de seu país, porém é algo facultativo e não que lhes é imputado.
           Por outro lado, críticos apontam que a diminuição acarretaria em uma espécie de efeito bola de neve, em que, cada vez mais, a idade dos jovens escolhidos para fazer parte de organizações criminosas diminuiria, pois a punição destinada a estes seria de certa forma paliativa e não acarretaria em grandes perdas para aquelas. Outro ponto contestável, também, seria o destino de envio do menor infrator, visto que as unidades de reformação como CAJE ou FEBEM são verdadeiras universidades de crimes, ou seja, não atendem ao objetivo de reabilitação dos criminosos juvenis. Segundo a SDH, 70% desses jovens tornam-se reincidentes voltando a praticar crimes quando deixam as unidades de internação.
O principal fator a ser observado, segundo essa vertente, engloba não apenas medidas penais, buscando melhores maneiras de punição, e sim visando uma análise mais aprofundada das condições sociais pelas quais estes jovens passaram desde o seu nascimento. Como pode-se cobrar de um indivíduo que convive com a criminalidade desde a infância (não necessariamente dentro de casa, mas tendo contato com malfazejos desde cedo) maturidade suficiente para dizer não ao crime quando este é a ele apresentado? Deve-se pensar primeiramente nas oportunidades apresentadas ou não aos menores infratores, para que dessa forma seja possível uma avaliação mais ampla da situação, buscando soluções mais produtivas do que uma simples redução de maioridade.
           A partir da exposição dos argumentos chega-se a percepção da necessidade de uma reforma ampla e irrestrita no campo social. Ela pressupõe tanto alterações no sistema educacional básico e familiar, como apoio financeiro por parte do Estado em pesquisas no campo da psicologia, investimento na formação de profissionais, que atuam nas instituições de recuperação juvenis, e nas estruturas físicas dos centros, visando que estes se mostrem como um espaço de reabilitação e acolhimento de menores que possuem, na maioria das vezes, em seu histórico, situações de descaso e negligência por parte de seus responsáveis. Em um artigo apresentado pelo UNICEF intitulado “Porque dizer não a redução da maioridade penal” apresenta-se o compromisso do Brasil em não reduzi-la:

“ Como é de conhecimento público, o UNICEF expressou  sua posição contrária à redução da idade penal, assim como à qualquer alteração desta  natureza, em face dos compromissos assumidos pelo Estado Brasileiro com a ratificação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente das Nações Unidas e outros documentos internacionais, e porque tal proposta contraria as principais tendências de administração da justiça da infância e adolescência no mundo. “

           Ainda nesse artigo, ressalta-se a relevância e eficácia do Estatuto da Criança e o Adolescente, o qual reforça que a existência de medidas socioeducativas já previstas na legislação contribuem para tratar o problema de criminalidade, o que deve haver, porém, é a aplicação destas e não somente sua normatização.
          Observa-se que apesar das medidas apresentadas só produzirem efeitos a médio/longo prazo, somente assim, serão proporcionadas resoluções mais concretas e efetivas para a questão da criminalidade, a qual assola de maneira tão cruel a sociedade atual, pois colocar um jovem de 16 anos em uma prisão com diversos outros criminosos seria selar seu destino como futuro profissional criminoso, se formos levar em conta a situação das atuais unidades prisionais. Uma redução da maioridade penal só iria acarretar em exclusão de mais uma parte da população sem a efetiva solução do problema que seria proporcionar a um jovem, talvez uma criança, a possibilidade de uma recuperação.
         Por fim, vale colocar uma frase do sociólogo Hebert de Souza, o Betinho : “Se não vejo na criança, uma criança, é porque alguém a violentou antes; e o que vejo é o que sobrou de tudo o que lhe foi tirado” 
                                           

 





                                                           Bibliografia


ATIREI O PAU NO GATO… E O GATO MORREU! : Os animais e seus direitos na atual sociedade.


Texto apresentado na aula do dia 08/05/12
Por Isabela Sardinha Lisboa Leite

A relação entre seres humanos e animais de estimação é muito antiga. Domesticados, os bichos tornaram-se verdadeiros companheiros de seus donos, suprindo-lhes a necessidade de atenção e afeto. Contudo, essa ligação nem sempre é equilibrada, e a noção de pleno domínio do ser humano sobre o animal acaba, muitas vezes, em violência. Por tudo isso, é preciso dizer com muita clareza: maus tratos a animais é crime, e deve ser denunciado.
Com a Revolução Neolítica, que ocorreu no período da Pedra Polida (10000 a 5000 a.C.), o homem começou a domesticar animais com o intuito de melhorar a capacidade de realizar tarefas, e portanto, ter maiores chances de sobrevivência. A partir da Idade Média a domesticação de certos bichos se tornou sinônimo de luxo nos castelos, e já na atualidade, percebe-se a criação de animais domésticos como uma prática disseminada. É preciso notar que o animal doméstico exerce uma função social importante no momento em que supre carências humanas, exerce a função de guia, de guarda, e outras atividades que complementam as do próprio dono. Neste sentido, esses seres corroboram não só para o equilíbrio ecológico, mas também para o desenvolvimento e progresso da sociedade contemporânea.
Recentemente, tivemos notícia de agressões brutais e cruéis a animais de estimação que, indefesos, acabaram reféns de maldade humana. No dia 2 de novembro de 2011, o cachorro rottweiller Lobo foi preso ao carro do seu dono, o mecânico Cláudio César Messias, e arrastado por vários quarteirões da cidade de Piracicaba, São Paulo. O cachorro foi acompanhado por 15 dias, chegou a ter uma das patas amputadas, mas não resistiu à infecção e morreu. Em outra ocorrência, um cachorro da raça yorkshire que vivia rotinas diárias de tortura foi espancado até a morte no dia 13 de novembro do ano passado na cidade de Formosa, interior de Goiás. As cenas da agressão, gravadas por uma vizinha, mostram a enfermeira Camila Corrêa jogando o animal para o alto, chutando o cão contra a parede e o prendendo dentro de um balde.
Os animais são sujeitos de direitos, visto que são tutelados pelo Estado e representados em Juízo pelo Ministério Público ou pelos representantes das sociedades protetoras de animais. É o que garante o Decreto Federal nᵒ 24.645/34 que dá proteção legal aos animais desde os tempos de Getúlio Vargas, além de elencar um extensivo rol das práticas consideradas maus-tratos. Há ainda a Lei Federal nᵒ 9.605/98 conhecida como “Lei dos Crimes Ambientais”, que em seu artigo 32 comina pena de 3 meses a 1 ano de prisão e multa, podendo ser aumentada de 1/6 a 1/3 se ocorrer a morte do animal (silvestre, doméstico ou domesticado, nativo ou exótico) vítima de maus-tratos, ato de abuso, de ferimentos  ou mutilação. No mesmo sentido, podem ser citadas a Constituição Federal de 1988 que em seu artigo 225, parágrafo 1ᵒ, inciso VII, veda as práticas que submetam os animais a crueldade, e a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela UNESCO em sessão realizada em Bruxelas no dia 27 de janeiro de 1978, e que enuncia os direitos dos animais em 14 artigos.
As atuais legislações que abordam a questão dos maus-tratos a animais domésticos preveem uma pena considerada branda por alguns especialistas. Assim, é comum ver agressores que não cumpriram sua detenção. O que ocorre na maioria dos casos é a chamada transação penal, situação em que se substitui uma pena de detenção por uma restritiva de direitos ou pagamento de multa. Diante desse cenário, tem surgido um Projeto de Lei que visa desvincular o crime de maus-tratos, abandono e morte de animais da lei de crimes ambientas, e gerar punição com maior seriedade. A Lei Lobo, que carrega o nome do cachorro vítima de violência, é um Projeto de Lei de Iniciativa Popular, instrumento utilizado pela sociedade para sociedade.
Outro mecanismo que se encontra à disposição da população e que pode ser bastante válido é a denuncia. Os atos de abuso e maus-tratos por configurarem crime ambiental devem ser denunciados e, para tanto, é preciso que haja a certeza do enquadramento do caso e maior quantidade de informações e provas possíveis. Além da disponibilidade da polícia através do 190 e do Disque Denuncia, podem ser procuradas a Delegacia de Polícia, onde será aberto um Termo Circunstanciado, ou até mesmo a Promotoria de Justiça (Ministério Público Estadual) da cidade, onde será protocolada uma representação. De qualquer forma, a pessoa que faz a denuncia figura como testemunha do caso, sendo que quem denuncia, na prática, é o Estado. Todos os procedimentos acima relatados demonstram que a sociedade muito pode fazer para combater as agressões a animais e, neste sentido, a conscientização de que seres humanos e demais animais estão estreitamente relacionados é a chave de tudo. É a melhor maneira de combater esse tipo de crime.
O critério da espécie para a diferenciação de tratamento é um critério eminentemente falho. Muitos possuem dificuldades em aceitar, mas as diferenças entre nós e os animais é muito mais uma questão de grau do que de espécie propriamente dita. Neste sentido, muitas linhas divisórias que foram fixadas entre os seres humanos e os animais têm se mostrado insipientes. O argumento de que apenas seres humanos usavam ferramentas, por exemplo, foi superado pelo descobrimento de um pica-pau das ilhas Galápagos que utiliza espinhos de cactos para extrair insetos de buracos em árvores. O argumento de que, no entanto, os seres humanos fossem os únicos capazes de produzir suas próprias ferramentas também pôde ser afastado pela descoberta de chipanzés, nas florestas da Tanzânia, que mascam folhas para produzir uma esponja capaz de sugar água, além de limparem galhos para utiliza-los na captura de insetos. O domínio humano da linguagem é outro preceito prontamente rebatido pelos indícios de uma linguagem complexa entre baleias e golfinhos, ou pelo aprendizado da linguagem de sinais de surdos pelos chipanzés, orangotangos e gorilas. Enfim, o abismo entre os seres humanos e os animais é um pressuposto altamente questionável, mas ainda que ele exista e seja amplo, não habilita nenhum tipo de prioridade de consideração[1].
Ao admitirmos o princípio da igualdade como uma base sólida para as relações com os outros seres de nossa própria espécie, é preciso reconhecê-lo como base moral para as relações com aqueles que divergem de nós, ou seja, os animais não-humanos[2]. Jeremy Bentham, o criador do utilitarismo moderno, foi um dos que admitiu a aplicação do princípio para além da nossa própria espécie e, em relação a isso, notou:
Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados [...] Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser humano seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar? Mas, para lá de toda comparação possível, um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, do que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim; que importância teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas, sim, se são passíveis de sofrimento[3].
 Não podemos sentir a dor do outro, seja ele humano ou não; o que nos faz constatar o sofrimento, por exemplo, de uma criança ao cair, é a maneira como ela se comporta. De forma semelhante, os animais, mesmo não fazendo uso do nosso recurso linguístico, também apresentam comportamentos sugestivos de dor, e esses comportamentos são suficientes para detectar o sofrimento. Além disso, as grandes semelhanças, em termo de sistema nervoso, observadas entre os vertebrados e a relativa antiguidade, em termos evolutivos, das partes do sistema humano referentes às sensações dolorosas, tornam admissível que a capacidade dos animais de sentir dor seja semelhante à nossa. De fato, se um ser sofre, não pode haver motivos que no levem a recusar e desconsiderar esse sofrimento. Neste sentido, o limite da sensibilidade (e não o da inteligência, por exemplo) é o que deve ser tomado por parâmetro na preocupação com o outro e seus interesses.[4] A dor e o sofrimento são coisas ruins, e devem ser evitadas independentemente da espécie, raça, sexo ou credo.
É preciso ressaltar que os excessos fazem mal a qualquer relacionamento e, sem dúvidas, a afirmação vale também para as relações entre o ser humano e seu animal de estimação. Recentemente, a notícia de um gato que herdou dez milhões de euros ganhou destaque na mídia, todavia, absurdos históricos revelam que é antigo o cuidado excessivo de animais. Incitatus, cavalo do imperador Calígula, era enfeitado com um colar de pedras preciosas, possuía uma guarda pretoriana, foi nomeado senador romano, designado sacerdote, e ainda ganhou como homenagem de seu dono um palácio construído de mármore. É claro que esses exemplos são casos extremos, no entanto, os exageros no tratamento de um bicho podem estar em dar atenção ao animal como se ele fosse gente, mudar a cor dos pelos, fazer chapinha, passear dentro de carro de bebê e qualquer tipo de atitude que para o próprio animal não faz o menor sentido. A relação entre uma pessoa e seu animal de estimação não deve ser sobrecarregada de cuidados excessivos, e sim de uma consciência em respeitar a natureza do bicho.
Exageros não, respeito sim: é o entendimento que precisa ser plantado e cultivado na atual sociedade. Lembrando que respaldar a causa dos animais não exclui a necessidade e a possibilidade de amparo aos casos de violência e dor humana. As duas condutas precisam e devem ser levadas a diante de forma paralela, de modo que nenhum direito da pessoa humana deixe de ser salvaguardado em prol dos direitos dos animais, ou vice versa. A indagação que comumente surge, de que como é possível alguém perder tempo tratando da igualdade dos animais, enquanto a igualdade é negada a tantos seres humanos, apenas reflete o preconceito popular contra o fato de se levar a sério os direitos dos animais. Um preconceito tão improcedente quanto aquele que leva os brancos a menosprezarem os interesses dos negros. Um preconceito que deve ser combatido.


[1] SINGER, Peter. Ética Prática. 2ª edição, São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998, passim.
[2] Ibid., p.65.
[3] BENTHAM, 1789 apud SINGER, 1998, p.66-67.
[4] Ibid., passim.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

O MESTIÇO NO BRASIL: Uma Questão Racial Complexa


Texto apresentado no dia 03/04/12
Por Guilherme Leite Chamum Aguiar e Lucas Martins de Andrade


No decorrer do século XX pode-se observar no Brasil um considerável progresso no âmbito da questão racial, principalmente no que se refere aos afro-brasileiros e aos nativo-brasileiros. Contudo, no que tange aos indivíduos que por serem frutos da miscigenação, não são caracterizados como negros - mesmo tendo a mesma raiz de ancestralidade que eles e as mesmas condições de marginalização que eles, assim como sofrendo dos mesmos flagelos e preconceitos - o avanço é quase nulo. É sobre a não inclusão dos mestiços marginalizados nas políticas afirmativas que o presente artigo se destina a tratar, visto que eles acabam encontrando-se duplamente alijados do processo social: marginalizados pela sociedade racista e excluídos das políticas afirmativas destinadas aos negros Não seria o mestiço de origem afro-descendente tão marginalizado quanto o negro? Seria uma pequena diferença no tom de pele o suficiente para apagar da história do mestiço as marcas do chicote europeu da escravidão? Não seria também o mestiço vítima de preconceito e exclusão da sociedade? Estaria o mestiço em condições de igualdade com o branco para não precisar ser incluído nas ações afirmativas? São questões como essas que nos motivaram a trabalhar a questão racial do mestiço brasileiro no presente trabalho.
 
Sabe-se que o Brasil é um país de situação racial ímpar. A miscigenação ocorrida no decorrer de seu desenvolvimento levou a um contexto em que definir a “cor” de um indivíduo torna-se uma tarefa quase impossível. Enquanto países como África do Sul e Estados Unidos apresentam forte determinação da identidade racial, no Brasil isso não é observado.
  A dificuldade na determinação dessa característica divide estudiosos e a população em geral. Joel Rufino dos Santos, historiador e professor da UFRJ, tenta definir o negro brasileiro enquadrando-o em características que ele julga essenciais, incluindo cor de pele, ancestralidade africana, ascendência escravocrata, pobreza, além da própria assunção da identidade. Obviamente essa definição tentaria sistematizar algo complexo e sem definição, além de excluir completamente indivíduos que não cumpram um ou outro quesito. Assim, se uma pessoa tivesse traços mestiços na família, estaria sendo excluída de ações afirmativas por parte do governo.
  Esse exemplo serve para determinar que não se pode definir um “negro” apenas pelo tom de pele ou algum outro conceito biológico, mas também deve-se considerar os fatores histórico-sociais. E os estudos e pesquisas realizados apenas provam mais e mais que no Brasil uma classificação absoluta como “negro” é quase inexistente. Assim, faz-se necessária uma breve análise do histórico do fenômeno da miscigenação no Brasil.
  O primeiro tipo teria surgido nos primórdios da história do país. Os brancos europeus tiveram seu contato com os povos indígenas logo após sua chegada à terra desconhecida. Algo que teria motivado isso seria a necessidade de ocupação do imenso território confrontada com a pequena população portuguesa. Além disso, foi necessária a formação de laços com os povos nativos, sendo a estratégia adotada a dominação da cultura desses povos, subordinando-os à dominação colonial. O terceiro e último fator a ser levado em conta seria, pura e simplesmente, a libido do conquistador, que, reprimido pela toda poderosa Igreja Católica, teve uma oportunidade para satisfazer suas vontades em uma terra distante de sua sociedade original.
  O segundo tipo de miscigenação teria ocorrido com o contato de negros de origem africana (escravos fugidos, quilombolas) com povos nativo-brasileiros. Esse fenômeno ocorreu principalmente com os movimentos sertanistas e o auge da plantação de cana-de-açúcar, quando quantidades imensas de escravos africanos desembarcavam no país constantemente. Comunidades quilombolas e nativos refugiados vieram a interagir e formar a chamada cultura cafuza.
  O terceiro tipo, e sem dúvida o mais proeminente na população brasileira, é o que envolve o branco europeu e o negro de origem africana. O primeiro motivo que teria levado a essa miscigenação teria sido, obviamente, seria o mesmo que levou à formação do grupo cafuzo: a imensa quantidade de escravos africanos chegando ao Brasil constantemente ao longo de mais de três séculos. Sua cultura acabou infiltrando-se no país. O segundo motivo seria a submissão do escravo negro ao amo branco. O branco europeu usava a população negra como válvula de escape para seu prazer sexual, algo muito facilitado pela presença constante de membros desse grupo em sua rotina. O fácil acesso a uma escrava negra tornou essa prática muito comum, assim fazendo com que mestiços de negros e brancos tenham alcançado número proeminente.
O mestiço era visto como o elo fraco, o passado perverso da colonização; como o sinal de fraqueza do colonizador que, sucumbindo aos anseios da carne, procriou com as raças ditas inferiores. Por esse motivo o mestiço sempre ficou à margem da sociedade desde seu nascimento, quando era considerado filho bastardo e ilegítimo do conquistador branco e não tinha acesso às mesmas oportunidades e direitos que eram ofertados aos filhos brancos, legítimos ou não, do colonizador branco. A prole mestiça era frequentemente incorporada à massa escrava negra das senzalas, independentemente de possuir uma tonalidade de pele mais clara, ou seja, ser negro no Brasil há muito não é  uma questão biológica, mas sim histórico-cultural.
Sistemas de cotas no Brasil são muito necessários para remediar as desigualdades e injustiças de cunho histórico presentes na sociedade brasileira hodiernamente. Contra essa assertiva  restam poucas objeções bastante infundadas e sem lastro na realidade brasileira. O problema em questão é: as cotas raciais existentes atualmente no país também beneficiam os ditos negro- mestiços ou negro-histórico-sociais brasileiros, ou a sua atuação restringe-se a fatores secundários e acessórios à identidade negra como, por exemplo, a cor da pele e a textura do cabelo?
Infelizmente podemos constatar que os sistemas de cotas atualmente existentes tendem a observar quase que exclusivamente características físicas e a ignorar fatores de importância cabal como história e topos social.
Em maio de 2007 dois irmãos gêmeos e mestiços, Alan Teixeira da Cunha e Alex Teixeira da Cunha, de 18 anos ambos, inscreveram-se no sistema de cotas raciais para ingressar na UnB. Essa opção foi tomada pelos irmãos por causa da origem afro-descendente da família (o pai de ambos era negro de pele escura) e por possuírem pele morena. Alex e Alan eram gêmeos univitelinos e, portanto fisicamente idênticos. Para que o pedido para ser beneficiado pelo sistema de cotas fosse aceito pela UnB, os candidatos deveriam enviar fotos suas para uma comissão avaliadora examinar se eles seriam dignos de se enquadrar no sistema. Os dois irmãos tiraram fotos no mesmo dia e enviaram-nas para a comissão. Depois de avaliar as fotos, veio o parecer inacreditável: para a UnB Alex seria branco e não poderia ser beneficiado pelo sistema de cotas enquanto Alan seria negro e teria o direito ao benefício.
Esse caso pitoresco evidencia o caráter meramente exterior, ineficiente e incompleto que o sistema de cotas raciais apresenta atualmente. Na avaliação atual feita no sistema de cotas o aspecto principal a ser avaliado e levado em conta é excluído do processo, qual seja a identificação do negro histórico-social, a quem realmente se destina o projeto.
A proposta não é o fim das políticas afirmativas, as quais, pelo contrário, devem ser estimuladas e fortalecidas em prol de uma sociedade mais justa e igualitária conforme prevê a Constituição; mas sim uma mudança nos critérios de definição do beneficiado pelas políticas. Nesse sentido a proposta reside numa transformação do conceito de “negro” existente. Em vez de representar um apanhado de características físico-biológicas um tanto quanto nebulosas e incertas em muitos casos, a palavra negro deveria se referir a um apanhado de características sociais e históricas peculiares a uma parcela da população que foi e ainda é explorada pela massa hegemônica, é alvo de preconceito e desigualdade social contundentes.

Extensão do conceito de união estável para as relações homoafetivas


Texto apresentado no dia 24/05/12
Por Iana Dornelas Fonte Boa e Caio Eduardo Cormier Chaim
 

A Constituição Federal de 1988 estabelece que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, orientado por princípios fundamentais que refletem os valores da nossa sociedade, inspirando e conduzindo a interpretação e a aplicação do Direito nos casos concretos. A dignidade da pessoa humana é um dos princípios norteadores de nosso ordenamento jurídico, um dos mais notáveis elementos dos chamados princípios fundamentais, base da concepção ocidental de liberdade e justiça.
Na esfera privada, a Lei Magna reconhece a orientação sexual como expressão da personalidade, a qual deve ser protegida como bem jurídico que é, a fim de que possa se desenvolver em toda a sua plenitude, desde que de acordo com os limites legais.
A igualdade também é assegurada como direito fundamental e a Constituição estabelece critérios para seu reconhecimento, condenando expressamente todas as formas de preconceito e discriminação. Tomando como base tais princípios, considerados como pilares de nosso sistema jurídico, discute-se a real aplicação destes na realidade social atual, trazendo-se à discussão a questão referente à extensão do conceito de união estável para relacionamentos homoafetivos.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, versa o seguinte: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” Anteriormente à edição da Carta Magna, inexistente era o conceito de união estável. Tais situações eram qualificadas como concubinatos, que poderiam ser limpos (em casos de relacionamento entre duas pessoas desimpedidas) ou sujos (quando uma das partes era casada e mantinha relação duradoura com outrem). Com a edição das novas leis, o concubinato foi eliminado e adquiriu sentido pejorativo, já que a modalidade “limpa”, agora, passaria a se chamar união estável.
O reconhecimento da união estável como entidade familiar passou, então, a produzir inúmeros outros efeitos jurídicos que resultam de um relacionamento familiar tipificado, envolvendo conceitos tais como sociedades de fato para partilha de patrimônio adquirido por esforço comum(Súmula 380 STF), direito real de habitação, pensões, sucessão, entre tantos outros. O Estado passa a tutelar os efeitos, agora jurídicos, produzidos por uma união estável.
A doutrina atual entende existirem quatro requisitos para que seja reconhecida uma união estável. São eles a publicidade, a durabilidade, continuidade do relacionamento e o objetivo de constituir família. Qualifica-se, dessa forma, respeitando a todas essas exigências, um casal homoafetivo que se relacione e viva junto após determinado período de tempo. O único empecilho para que seja reconhecido a estes tal direito, com todos os seus benefícios e extensões, é a barreira imposta pela norma, limitando o reconhecimento da união estável apenas, nas palavras da lei, aos relacionamentos “entre o homem e a mulher”.
Dessa forma, a orientação sexual usada para excluir do conceito de união estável a relação entre pessoas do mesmo sexo é um argumento altamente discriminatório, oposto ao pregado pelos princípios fundadores de nossa Constituição, retirando tais modalidades de relacionamento do conceito de entidade familiar, enquadrando-as como não merecedores de tutela jurídica, da previsibilidade e estabilidade da segurança jurídica, outro princípio fundamental de nosso sistema normativo.
Além do exposto, está previsto na Constituição o direito de escolha, o poder de decisão de autonomia privada. O ordenamento jurídico assegura a liberdade e, assim, deve criar meios e condições para que ela seja exercida, materializada. "Não reconhecer a um indivíduo a possibilidade de viver sua orientação sexual em todos os seus desdobramentos é privá-lo de uma das dimensões que dão sentido a sua existência, impedir o exercício de sua liberdade e o desenvolvimento de sua personalidade, depreciando a qualidade dos seus projetos de vida e dos seus afetos. Isto é: fazendo com que sejam menos livres para viver as suas escolhas." (Barroso, 2007, 18-19).
Baseado nas demandas sociais atuais, com novas exigências que não aquelas vividas no paradigma social existente quando a Constituição foi elaborada, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em 5 de maio de 2011, que é "Obrigatório o reconhecimento, no Brasil, da união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher; que os mesmos direitos e deveres dos companheiros  nas  uniões estáveis estendem-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo." A esse respeito já havia se declarado, também, o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nª 1.183.378-RS. Com isso, afirma-se um avanço na interpretação constitucional, se aproximando da realidade social presente e respondendo às demandas por coerência entre o texto da lei e os casos concretos recentes, resultados de novas dinâmicas sociais. A afetividade foi reiterada como o elemento essencial na caracterização da união estável com o julgamento do Supremo Tribunal Federal. Os requisitos de convivência pública, continuidade, durabilidade e objetivo comum de constituição de família (como descreve o art. 1723 do Código Civil) ganharam maior importância do que a simples limitação de sexo para o reconhecimento da união estável, imposta na redação do art. 226 da CF.
O relacionamento que recebe proteção legal é aquele que visa à plena comunhão da vida e dos interesses do casal. Ou seja, com essa nova interpretação, a união estável homoafetiva é tratada juridicamente como entidade familiar pelo Direito de Família, não mais como uma sociedade de fato, reconhecida no Direito das Obrigações. Encaminhados, agora, às Varas de Família, podem ser discutidos não apenas direitos patrimoniais, como também aqueles que resultam das relações familiares, tais como mútua assistência, alimentos, herança, habitação, benefícios previdenciários. Entre esses está inclusive o direito de converter a união estável em casamento civil, considerando que a lei deve facilitar essa conversão, para efeito da proteção do Estado (de acordo com a descrição do art. 226, §3º, da Constituição de 1988).
Mesmo com a posição favorável do STF quanto a legalizar a união entre pessoas do mesmo sexo e exigir que estes direitos sejam reconhecidos, existem decisões posteriores ao acordão que persistem em não reconhecer a união estável homoafetiva, como bem foi noticiado em caso de pedido de reconhecimento de união estável em Vara de Família na cidade de Goiânia, indeferido pelo juiz de primeiro grau.
Tais casos refletem a concepção homofóbica e conservadora que, infelizmente, ainda é perpetrada em nossa sociedade, trazendo à baila discussões acerca da legitimidade e extensão dos princípios fundamentais defendidos por nossa Constituição.

Referências Bibliograficas:
BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, nº. 16, maio-junho-julho-agosto, 2007. Disponível no site: http://www.direitopublico.com.br.
FRANCISCHET, Carolina Fratari; TAVARES, Maria Terezinha. União Estável Homoafetiva. Disponível em: <https://ssl4799.websiteseguro.com/swge5/seg/cd2008/PDF/SA08-20602.PDF>. Acesso em: 17 de abril de 2012
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277-7. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4277&processo=4277>. Acesso em: 17 de abril de 2012

< >, precedido da expressão Disponível em: 

Legalizar: alternativa a uma guerra em que só há perdedores

Texto apresentado no dia 24/05/12
Por Rafael de Acypreste e Augusto Valle


Nos dias 14 e 15 de abril, em Cartagena, Colômbia, a Sexta Edição da Cúpula das Américas debaterá, pela primeira vez em nível continental, a necessidade de mudar a atual política antidrogas e o Brasil tem um papel importante a cumprir nesse encontro.
A dependência às drogas pode ser uma trágica perda de potencial para o indivíduo envolvido, mas também é extremamente prejudicial para sua família, sua comunidade e, em conjunto, para toda a sociedade. E são por esses fatores que devemos, enquanto membros da sociedade, levantar um debate de forma mais aberta e plural, buscando livrar-se de preconceitos.
De acordo com o coronel Jorge da Silva, ex-chefe do Estado-Maior Geral da PMERJ, “O governo brasileiro precisa assumir maior protagonismo nas discussões sobre a questão no mundo. O modelo vigente, da radicalização repressiva, tem produzido os efeitos desastrosos conhecidos. Basta contar os mortos. O ponto de partida há de ser tomar o usuário como destinatário dos serviços de saúde e não da polícia”.
Só no México morreram 50 mil pessoas desde que o presidente Felipe Calderón declarou guerra contra as drogas em dezembro de 2006. Passados mais de 40 anos desde que Richard Nixon empreendeu em 1971 a "guerra contra as drogas" e criou a Força Administrativa de Narcóticos (DEA, na sigla em inglês), Washington gastou mais de US$ 2,5 trilhões e prendeu mais de 40 milhões de pessoas por crimes de narcotráfico e posse de substâncias ilícitas, sem os resultados esperados.

As drogas não são exclusividade da Modernidade
O debate atual sobre a legalização de drogas começa por um traçado histórico do uso da maconha e do posicionamento do Estado frente a essa prática. O primeiro ponto que merece destaque é que o consumo de drogas é tão antigo quanto a própria organização humana em sociedade. Seu uso é muito variado, de modo que o consumo pode estar ligado a práticas religiosas, medicinais ou mesmo hedonistas.
No Brasil, a Cannabis foi trazida pelos escravos africanos a partir de 1549, apesar de a fibra de cânhamo já ser utilizada pelos portugueses – para a fabricação de cordas, por exemplo. No século XVIII o cultivo da planta passou a ser preocupação da Coroa, que o incentivava devido a interesses econômicos. Isso já nos dá uma pista para entender as decisões de criminalização e, quanto ao uso como droga, é sabido que as camadas socioeconômicas mais desfavorecidas faziam uso da maconha, mas não chamavam a atenção da classe dominante branca.
No final do século XIX, intensifica-se o uso medicinal da planta e, na busca pelo monopólio de tais psicotrópicos, os médicos passaram a perseguir curandeiros e herbolários, excluindo todas as formas de terapia não aceitas pela medicina científica. A essa época, o usuário de drogas era considerado um doente que ameaçava a saúde, o bem-estar e a integridade do resto da população, por isso se inicia um posicionamento sanitarista, que marginalizava e interditava (internava) os usuários de psicotrópicos.
Concomitante a esse processo de “limpeza social-sanitária”, no âmbito das ciências sociais surge a antropologia criminal, fruto do modelo determinista. A guerra contra as drogas era marcada por um caráter racial e xenófobo presente nas campanhas políticas e publicitárias. No Brasil a maconha era diretamente associada às classes baixas, aos negros e mulatos e à bandidagem.
Nesse contexto constata-se – há muito – a criminalização da pobreza, explicada fundamentalmente pela característica seletiva do sistema penal. Este é uma construção política dos atores do poder, que constroem o direito penal com uma intencionalidade chamada por alguns de “velada”. Mas não há nada de intencionalidade velada no fato de o direito penal ter um caráter meramente punitivo, que estigmatiza determinado sujeito classificado de “delinquente”, o qual já é marginalizado antes mesmo de qualquer delito.
O “delinquente” é o jovem negro, pobre, desempregado, com baixa escolaridade e, em verdade, um sujeito-quase-objeto que não tem seus direitos fundamentais assegurados. Esse personagem é o alvo do sistema penal, que viola ainda mais seus direitos, numa busca por seu “corpo dócil” – como bem explicou Foucault –, para se encaixar no sistema pré-estabelecido imutável e hermético que é a sociedade utopiada pelo “Direito”.
Voltando à trajetória histórica, a partir de 1930, a repressão ao uso da maconha ganha força com a II Conferência Internacional do Ópio – realizada no ano de 1924 em Genebra –, que condenou essa droga. Em 1938 foi proibido totalmente o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de maconha por particulares no Brasil. Já em 1961 vem a Convenção Única de Entorpecentes, da Organização das Nações Unidas (ONU), considerando a maconha uma droga extremamente prejudicial à saúde e à coletividade, equiparando-a à heroína, o que é uma falsidade em termos científicos atuais.
Durante o regime militar no Brasil, a repressão aumentou, como se pode verificar, por exemplo, no decreto-lei 385 de 1968. Tal ato equiparou a pena do usuário à do traficante, desconsiderando o caráter autodestrutivo do primeiro, apesar de nosso ordenamento permitir outras formas de autodestruição (usar drogas lícitas ou se prostituir), que são reprovadas por preconceitos morais e religiosos, carentes de critérios jurídicos. Justamente por esse caráter, Roberto Lyra Filho dizia que a criminalização do usuário e da usuária de drogas deveria ceder espaço para outros tipos de pressão não coativa (moral, religiosa ou médica).
É o caminho que o Brasil vem lentamente percorrendo, imputando o seguinte, com a Lei nº 11.343/2006, conhecida como lei de entorpecentes:
Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

A prima bastarda
Apesar desses avanços, a inflação do direito penal em geral e, nesse caso específico, a criminalização de drogas como a maconha têm resultados desastrosos na sociedade. Tabaco e álcool possuem efeitos mais nocivos que a Cannabis ao se considerar os efeitos sociais da droga, o que nos dá outro sinal de que a proibição atende interesses morais, religiosos e econômicos e não de saúde pública e bem estar social. Abordemos os diversos aspectos que caracterizam esse desastre Estatal em relação à política antidrogas.
Em primeiro lugar, como a própria análise histórica mostra, as drogas serão utilizadas inevitavelmente pelos seres humanos e criminalizá-las é perder o controle sobre a produção, o comércio e o consumo, que não desaparecem, apenas se tornam ilegais. O sistema social exige vazadouros para dissolver suas tensões e as pessoas, em geral, procuram meios de “escapar” da realidade.  Além do mais, as drogas – como fruto proibido que são – estimulam a libido, no mais amplo sentido da palavra, adquirindo valor libertário e contestador, servindo de protesto independentemente da natureza objetivamente nociva. É mais interessante pensar e construir estratégias para diminuição dos riscos e danos das drogas – lembre-se que o Brasil é exemplo mundial na redução do uso de tabaco, por exemplo – mediante políticas públicas bem elaboradas, que envolvem prevenção, regulação, vigilância nos processos de produção e comercialização, educação e sistemas públicos de recuperação e saúde.
Em segundo lugar, a criminalização só beneficia quem age “fora da lei”, criando o mercado ilegal de drogas e gerando violência, corrupção, mortes e sonegação de impostos. Quem financia tudo isso não é o usuário que compra, mas o Estado que, por meio da omissão e proibição, abre caminho para todo um sistema sustentado na criminalidade. Os riscos e danos crescem também pelo fato de não ser possivel uma conscientização do uso correto de um produto ilícito. 
Com a descriminalização todo o mercado poderia ser regulado, com controle de qualidade, arrecadação de impostos e sem resquícios violentos no processo de produção e comercialização. A arrecadação de impostos merece especial atenção, pois estes podem ser revertidos para a saúde e educação públicas. Além de aumentar essa arrecadação, reduzem-se os custos com policiamento e sistema penal, o que pode resultar em ainda mais políticas públicas para assegurar direitos sociais.
Sobre o controle, vejamos o exemplo da Holanda, onde é permitida a venda de Cannabis em lojas que seguirem as seguintes regras: não pode haver propaganda, venda de drogas pesadas, venda para menores de 18 anos, transtorno público e comercialização de mais de 5 gramas por compra, além de ser proibida a venda de bebidas alcoólicas no estabelecimento, não se poder estocar mais do que 500 gramas e, em algumas cidades, a obrigatoriedade de estas lojas estarem a uma distância mínima de escolas e da fronteira. Muitos dos temores daqueles que condenam o uso da maconha são resolvidos com medidas nesse sentido da regulação.
Ao proibir, desconsideramos também os efeitos terapêuticos que a maconha pode ter, lembrando que o Brasil admite em tese seu uso para fins medicinais, científicos e uso ritualístico-religioso:
Art. 2o  Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.
Parágrafo único.  Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas.[1]

Outro argumento recorrente é de que a maconha é porta de entrada para outras drogas mais nocivas. Ideia falsa. A porta de entrada é a condenação à ilegalidade e ao mercado obscuro, caso contrário, procuraríamos drogas com características psicotrópicas semelhantes. O perfil psicotrópico da maconha (psicodisléptica, que causam, entre outros, alucinações) não se assemelha, por exemplo, à cocaína e cafeína, que são drogas psicoanaléptica (estimulantes, que afastam cansaço e fome). Já o álcool e os inalantes são drogas depressoras, chamadas psicolépticas.

A defesa é pela liberdade: de pensar e agir.
É preciso deixar claro que a ideia deste artigo não é defender o uso de drogas, mas racionalizar uma atividade intrínseca às sociedades, utilizando-se de critérios de saúde, segurança e economia públicas. Os efeitos nocivos das diversas drogas não podem ser desconsiderados; a produção e o consumo devem ser regulados; as propagandas de bebidas alcoólicas devem ser repensadas e restringidas (que incentivam o consumo desta droga e ainda contribuem para a disseminação de práticas sexistas e machistas); as políticas públicas de prevenção e promoção de saúde devem ser efetivas e atingir verdadeiramente seus usuários. Do ponto de vista do governo, é possível realizar um controle sanitário eficiente ao se legalizar a maconha? Temos (ou podem ser criados) programas de saúde que tenham resultados satisfatórios para o tratamento da dependência, sem estigmatização ou violação de direitos?
Enfim, legalizar não é banalizar, mas sim encarar o problema de maneira mais eficaz e segura possível. Ficam postas as questões de como é possível fazer isso e como a sociedade precisa se transformar culturalmente, sempre tendo em vistas as condições e realidades sociais e culturais de cada localidade.



[1] Lei nº 11.343/2006