quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Comissão Nacional da Verdade: uma breve introdução


Texto apresentado na aula do dia 04/09
Por Daniel Guedes


O presente texto tem como finalidade apresentar, de modo sucinto e direto, a estrutura, o propósito e os argumentos pró e contra a Comissão Nacional da Verdade. Para tanto, inicialmente, será necessário observar, brevemente, características das comissões da verdade de forma geral.
As comissões da verdade são mecanismos oficiais, os quais têm sido amplamente utilizados no mundo, criados para averiguar, como forma de esclarecer o passado histórico, violações e abusos aos Direitos Humanos. Seu funcionamento prioriza escutar as vítimas das arbitrariedades cometidas, bem como conhecer e entender o padrão das violações praticadas. Deve-se esclarecer também que tais comissões são órgãos temporários investidos de poderes para identificar todos os fatos ocorridos e todas as pessoas que participaram desse processo; tanto as que sofreram violências, quanto as que as praticaram.
A implementação das comissões da verdade permitem (re)inserir a questão do autoritarismo e suas consequências, promovendo a reflexão e prevenindo ações violadoras dos Direitos Humanos. Nesse sentido, cumpre destacar que as comissões estão num contexto de Justiça de Transição, a qual diz respeito como uma sociedade lida com um passado de violência e repressão, na passagem de regimes autoritários para a democracia. Portanto, representam, por vocação, a materialização de um marco histórico na passagem de um período para o outro.
O objetivo final das comissões é a produção de um relatório que permite à sociedade o conhecimento detalhado do regime opressor e violador, bem como a realização de recomendações que visam aprimorar as instituições do Estado (especialmente aquelas que lidam com a segurança pública) e contribuição para uma política definitiva de não repetição. São também objetivos das comissões: (i) descobrir, esclarecer e reconhecer abusos do passado, dando voz às vítimas por meio de testemunhos, os quais devem ser registrados; (ii) combater a impunidade (revelar as causas e consequências, o modus operandi e as motivações do regime que cometeu os atos de violência e repressão, assim como seus perpetradores); (iii) restaurar a dignidade e facilitar o direito das vítimas à verdade; (iv) acentuar a responsabilidade do Estado e recomendar reformas do aparato institucional (assim há o reconhecimento público e oficial de abusos cometidos); (v) reduzir conflitos e promover a reconciliação e a paz.
Além disso, cabe explicitar que 39 comissões da verdade já foram instaladas em todo o mundo, sendo a primeira em Uganda, em 1974. Embora não sejam idênticas, todas, em geral, possuem aspectos em comum, tais como: os membros devem ser de reconhecida integridade e com autoridade moral e intelectual (não devem ser membros nem perpetradores das violências praticadas nem as vítimas, assim como representantes de setores partidários nem pessoas vinculadas aos órgãos públicos que se envolveram nos atos de violência); os membros e seus assessores devem ter autonomia, imunidade e estabilidade; suas atribuições devem ser amplas o suficiente para que possam: requisitar testemunhas, documentos e informações, visitar locais onde violações foram cometidas; devem existir critérios claros e objetivos para a convocação de testemunhas; os membros têm autonomia para decidir se as sessões serão públicas ou privadas, mas todas devem ser gravadas e registradas (a maioria é pública); a maioria das comissões teve duração de dois anos (variou-se de seis meses a três anos).
Deve-se ressaltar também que há diferenças entre as diversas comissões a começar pelo nome, visto que muitas não possuem o nome “Comissão da Verdade”. Ainda, dentre outras diferenças, estão: as especificações de seus mandatos, dos termos de investigação e principalmente do poder e autonomia com que forem investidas, refletindo as necessidades, possibilidades e realidades de cada país. Também seus resultados práticos finais se diferenciaram em razão dos mesmos fatores.
É inevitável, por analisarem fatos que poderiam ser sujeitos a processo judicial, uma comparação entre comissões da verdade e o sistema judiciário. Certamente, as comissões são independentes do mundo legal e não detêm o mesmo poder que os tribunais, não podendo, por exemplo, condenar, civil ou penalmente, nenhuma pessoa nem obrigar ninguém a testemunhar. Todavia, por ter uma função mais específica, as comissões investigam o tema com muito mais profundidade do que os tribunais, bem como suas características, mais flexíveis, permitem chegar a conclusões várias vezes inacessíveis aos processos judiciais. Assim, geralmente, o resultado final é considerado “verdade histórica” em contraposição à “verdade judicial”, donde, de acordo com especialistas, reside a força moral e política das comissões.
Realizadas tais considerações acerca das comissões da verdade, cabe a analisar, então, o contexto brasileiro. Nessa linha, deve-se esclarecer que a Comissão Nacional da Verdade não é o primeiro marco da Justiça de Transição em nosso país. Assim, já foram criadas a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos e a Comissão de Anistia. A primeira, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, teve como objetivo a reparação aos familiares de mortos e desaparecidos entre 1961 e 1985, já a segunda, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, propicia medidas indenizatórias de reparação a pessoas atingidas por atos arbitrários cometidos antes da promulgação da Constituição de 1988.
Após quase dois anos de tramitação do projeto de lei 7376, no Congresso Nacional, a Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, criou a Comissão Nacional da Verdade com “a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (de 1946 a 1988), a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.
A Comissão possui sete membros, nomeados pela Presidente, de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com a defesa da democracia e da institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos (auxiliados, cada um, por dois assessores) e terá duração de 2 anos a partir de sua instalação, devendo apresentar, ao final do período, relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as conclusões e recomendações.
Em 16 de maio de 2012 foi, oficialmente, instalada a Comissão Nacional da Verdade, sendo nomeados membros: (i) Cláudio Fonteles (Procurador Geral da República entre 2003 e 2005); (ii) Gilson Dipp (Ministro do STJ e, desde 2011, do TSE); (iii) José Carlos Dias (Ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso); (iv) José Paulo Cavalcante Filho (advogado e consultor); (v) Maria Rita Kehl (psicanalista e cronista); (vi) Paulo Sérgio Pinheiro (diplomata e professor da USP) e (vii) Rosa Maria Cardoso da Cunha (advogada criminalista e professora).
Durante a cerimônia de instalação, a Presidente Dilma Rousseff afirmou que a Comissão não teria caráter revanchista, que seriam respeitados os pactos nacionais (referência principalmente à Lei da Anistia, objeto de controvérsias e polêmicas entre setores da sociedade civil e militares) e que a Comissão seria de Estado, e não de governo. Além disso, em entrevista concedida à Folha, no mesmo dia da instalação, o membro Gilson Dipp afirmou que a Comissão não tem poder para revisar a Lei da Anistia, vez que não possui poder jurisdicional nem persecutório, e que o STF já decidiu pela não revisão da Lei.
Diante desse contexto, vários foram os argumentos favoráveis à Comissão e seus objetivos. Nesse sentido, de acordo com Celso Lafer, a Comissão tem como finalidade a busca da verdade factual a qual contribuirá com a História, embora não seja História. Isto é, o seu papel seria o de constituir um local de memória da verdade factual da violação de Direitos Humanos, no Brasil, no período determinado. E a memória, diferente da História, escolhe, seleciona e é vivida no presente com preocupação para o futuro. Assim, a Comissão deverá indicar as consequências das ações relativas àquele período, para a vida política democrática, em contraposição à ocultação dos atos, pelo Estado e parte da sociedade, o que contribuirá para o fortalecimento do princípio da transparência. Para Fábio Konder Comparato, a importância da Comissão está resumida na frase “aqueles que se recusam a lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”.
Representantes de diversos setores da sociedade civil, como engenheiros, advogados (por meio da OAB nacional), juízes, artistas, intelectuais, educadores e cineastas apoiaram a instauração da Comissão.
Por outro lado, há também críticas à Comissão. Dentre elas, podemos citar a crítica feita por Ives Gandra Silva Martins, quem sustenta não ser adequada a ausência de historiadores entre os membros, já que a finalidade é “resgatar a verdade histórica de um período de 42 anos”. Afirma, ainda, que a Comissão é seletiva ao não se propor, segundo ele, examinar as ações praticadas pelos guerrilheiros e, por fim, que a constituição e instalação da mesma são inoportunas, pois não será possível alcançar nenhum resultado profícuo, mas apenas “remoer feridas” (destaca-se que não há, até o presente momento, consenso expresso, entre os membros, sobre quais atos deverão ser apurados; se todas as violações aos Direitos Humanos; se apenas aquelas perpetradas pelos representantes do Estado).
Outra crítica à Comissão é feita por João Mellão Neto, o qual afirma, inicialmente, que o próprio nome está equivocado por usar o termo “Verdade”, ao indagar verdade de quem. Também sustenta que a Comissão, como está formada (membros e objetivos), representa a “esquerda” e que não fará uma investigação ampla e adequada, não se verificando os atos de violência de ambos os lados.
Luiza Erundina criticou a ausência de um debate mais amplo, por meio de audiências públicas e discussões de especialistas, para a constituição da Comissão e, também, que a mesma não tem orçamento próprio o que limitará a sua atuação.
Já alguns militares entendem que a Comissão, como está formada, é parcial e significa um gesto de revanchismo e agressão às Forças Armadas.
Ainda, até mesmo alguns ativistas de Direitos Humanos criticaram a Comissão por ela não deter poder de punição, o que representaria um enfraquecimento da mesma, não contribuindo para o alcance da justiça. Por último, há críticas com relação à duração da Comissão, a qual não seria suficiente para um trabalho adequado.
Ante essas considerações, percebe-se que os argumentos favoráveis e contrários, e as críticas são de diversas naturezas, os quais variam desde a constituição em si da Comissão até a forma como essa foi realizada.
Em que pesem os argumentos contrários à constituição, é necessário sustentar que a investigação, a revelação e o reconhecimento detalhado dos fatos ocorridos no período autoritário são imprescindíveis, e mesmo inevitáveis, para o aprofundamento e consolidação de uma Nação democrática. Nessa linha, não é coerente existir um Estado, que se objetiva democrático, não conhecer e admitir seu passado e suas consequências, pois, a partir desses passos, a busca de meios e opções para efetiva construção e fortalecimento da democracia é mais fundamentada e madura.
Desse modo, no contexto brasileiro, a constituição da Comissão Nacional da Verdade representa, sim, um evento imperativo, do qual resulta a devida passagem para um estágio mais consistente da democracia.
Ressalta-se, contudo, que, de fato, trata-se de um tema delicado, até mesmo, por sua relativa proximidade temporal com o período em referência. Assim, a sua constituição deveria procurar, ao máximo, a minimização de equívocos e, nesse aspecto, cumpre destacar, preliminarmente, que o nome dado “Comissão Nacional da Verdade”, embora seja igual ou similar aos dados em alguns outros países, é, no mínimo, pretensioso, e não caracteriza, de modo mais adequado, a História nem a memória do período.
Além disso, a despeito de os membros da Comissão atenderem, em grande parte, às exigências para suas nomeações, o argumento de não haver não haver pelo menos um historiador, dentre aqueles, é, sim, válido, vez que a missão em questão está, essencialmente, relacionado à História. Também são válidas as críticas quanto (i) à ausência de orçamento próprio, pois realmente pode limitar a atuação da Comissão, (ii) ao argumento de que deveria ter havido um debate mais amplo, principalmente no seio da sociedade civil, antes da constituição da Comissão e, ainda, (iii) ao de que o tempo para a conclusão dos trabalhos (2 anos) não é suficiente para um trabalho apropriado.
Quanto às críticas de que essa é uma Comissão de “esquerda”, estas parecem não prosperar, vez que há membros com diferentes experiências e ações ao longo de suas carreiras, assim como há aqueles que foram indicados para função política de direção em governos considerados de direita e outros em de esquerda. Portanto, tal crítica, em princípio, não se aprofunda, resultando, em geral, em comentários sem maiores fundamentações.
No que diz respeito à crítica de que a investigação deveria ser ampla (abranger os dois lados), cabe ressaltar que não há dúvidas, em caso de exame, de que os atos de violência perpetrados pelos representantes do Estado devem ser averiguados. Isto porque o fundamento básico da Comissão é reconhecer os fatos pretéritos; buscar, por meio desse ato, evitar a repetição dos mesmos; e, com efeito, aprimorar a democracia, ou seja, a missão da Comissão é, fundamentalmente, voltada para o futuro, para a consolidação do regime democrático. Assim, deve-se admitir que os atos de violência e repressão praticados pelo Estado e seus representantes, de fato, minaram a democracia, sendo, portanto, devida sua investigação, em conformidade com os preceitos e missão da Comissão.
Por outro lado, a controvérsia maior, nesse ponto, está em relação aos atos praticados pelos guerrilheiros; se devem ou não ser averiguados também. Ora, quanto aos objetivos e atos dos guerrilheiros não é tão fácil perceber se eram autoritários ou não, se comparados aos dos representantes do Estado, o que iria de encontro à construção democrática. Além disso, sempre que o Estado faz uso de seus meios para impor sua vontade, pela força e repressão, não há dúvidas de que praticou atos contrários à democracia e justamente por quem deferia defendê-la, já no caso oposto, o dos guerrilheiros, a situação não é tão cristalina, ou seja, os riscos à democracia não são tão evidentes, sendo, aparentemente, mais especulações do que algo concreto.
Por tudo o que foi exposto, parece que, em um primeiro momento, por mais que a Comissão possa investigar ambos os lados, a concentração dos esforços, em razão da missão da Comissão, deve ser orientada para averiguação dos atos praticados pelos representantes do Estado.
Diante de todo o exposto, conclui-se que a constituição da Comissão Nacional da Verdade representa uma necessidade para o avanço democrático brasileiro e deveria, sim, ser realizada, embora sua forma, de modo geral, isto é, o tempo (sua duração), membros, processo de constituição, termos, não são os mais adequados, possuindo equívocos que podem prejudicar o resultado final a ser apresentado. Nesse sentido, cresce a importância, da sociedade, como um todo, participar ativa, constante e responsavelmente dos trabalhos da Comissão.