Texto apresentado na aula do dia 04/09
Por Daniel Guedes
O
presente texto tem como finalidade apresentar, de modo sucinto e direto, a
estrutura, o propósito e os argumentos pró e contra a Comissão Nacional da
Verdade. Para tanto, inicialmente, será necessário observar, brevemente,
características das comissões da verdade de forma geral.
As
comissões da verdade são mecanismos oficiais, os quais têm sido amplamente
utilizados no mundo, criados para averiguar, como forma de esclarecer o passado
histórico, violações e abusos aos Direitos Humanos. Seu funcionamento prioriza
escutar as vítimas das arbitrariedades cometidas, bem como conhecer e entender
o padrão das violações praticadas. Deve-se esclarecer também que tais comissões
são órgãos temporários investidos de poderes para identificar todos os fatos
ocorridos e todas as pessoas que participaram desse processo; tanto as que
sofreram violências, quanto as que as praticaram.
A
implementação das comissões da verdade permitem (re)inserir a questão do
autoritarismo e suas consequências, promovendo a reflexão e prevenindo ações
violadoras dos Direitos Humanos. Nesse sentido, cumpre destacar que as
comissões estão num contexto de Justiça de Transição, a qual diz respeito como
uma sociedade lida com um passado de violência e repressão, na passagem de
regimes autoritários para a democracia. Portanto, representam, por vocação, a
materialização de um marco histórico na passagem de um período para o outro.
O
objetivo final das comissões é a produção de um relatório que permite à
sociedade o conhecimento detalhado do regime opressor e violador, bem como a
realização de recomendações que visam aprimorar as instituições do Estado
(especialmente aquelas que lidam com a segurança pública) e contribuição para
uma política definitiva de não repetição. São também objetivos das comissões:
(i) descobrir, esclarecer e reconhecer abusos do passado, dando voz às vítimas
por meio de testemunhos, os quais devem ser registrados; (ii) combater a
impunidade (revelar as causas e consequências, o modus operandi e as motivações do regime que cometeu os atos de
violência e repressão, assim como seus perpetradores); (iii) restaurar a
dignidade e facilitar o direito das vítimas à verdade; (iv) acentuar a
responsabilidade do Estado e recomendar reformas do aparato institucional
(assim há o reconhecimento público e oficial de abusos cometidos); (v) reduzir
conflitos e promover a reconciliação e a paz.
Além
disso, cabe explicitar que 39 comissões da verdade já foram instaladas em todo
o mundo, sendo a primeira em Uganda, em 1974. Embora não sejam idênticas,
todas, em geral, possuem aspectos em comum, tais como: os membros devem ser de
reconhecida integridade e com autoridade moral e intelectual (não devem ser
membros nem perpetradores das violências praticadas nem as vítimas, assim como
representantes de setores partidários nem pessoas vinculadas aos órgãos
públicos que se envolveram nos atos de violência); os membros e seus assessores
devem ter autonomia, imunidade e estabilidade; suas atribuições devem ser
amplas o suficiente para que possam: requisitar testemunhas, documentos e
informações, visitar locais onde violações foram cometidas; devem existir
critérios claros e objetivos para a convocação de testemunhas; os membros têm
autonomia para decidir se as sessões serão públicas ou privadas, mas todas
devem ser gravadas e registradas (a maioria é pública); a maioria das comissões
teve duração de dois anos (variou-se de seis meses a três anos).
Deve-se
ressaltar também que há diferenças entre as diversas comissões a começar pelo
nome, visto que muitas não possuem o nome “Comissão da Verdade”. Ainda, dentre
outras diferenças, estão: as especificações de seus mandatos, dos termos de
investigação e principalmente do poder e autonomia com que forem investidas, refletindo
as necessidades, possibilidades e realidades de cada país. Também seus
resultados práticos finais se diferenciaram em razão dos mesmos fatores.
É
inevitável, por analisarem fatos que poderiam ser sujeitos a processo judicial,
uma comparação entre comissões da verdade e o sistema judiciário. Certamente,
as comissões são independentes do mundo legal e não detêm o mesmo poder que os
tribunais, não podendo, por exemplo, condenar, civil ou penalmente, nenhuma
pessoa nem obrigar ninguém a testemunhar. Todavia, por ter uma função mais
específica, as comissões investigam o tema com muito mais profundidade do que
os tribunais, bem como suas características, mais flexíveis, permitem chegar a
conclusões várias vezes inacessíveis aos processos judiciais. Assim,
geralmente, o resultado final é considerado “verdade histórica” em
contraposição à “verdade judicial”, donde, de acordo com especialistas, reside
a força moral e política das comissões.
Realizadas
tais considerações acerca das comissões da verdade, cabe a analisar, então, o
contexto brasileiro. Nessa linha, deve-se esclarecer que a Comissão Nacional da
Verdade não é o primeiro marco da Justiça de Transição em nosso país. Assim, já
foram criadas a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos e a Comissão de
Anistia. A primeira, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, teve como
objetivo a reparação aos familiares
de mortos e desaparecidos entre 1961 e 1985, já a segunda, durante o
governo de Luiz Inácio Lula da Silva, propicia medidas indenizatórias de
reparação a pessoas atingidas por atos arbitrários cometidos antes da
promulgação da Constituição de 1988.
Após
quase dois anos de tramitação do projeto de lei 7376, no Congresso Nacional, a
Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, criou a Comissão Nacional da Verdade com
“a finalidade de examinar e esclarecer as graves
violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art.
8o do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (de 1946 a 1988), a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e
promover a reconciliação nacional”.
A Comissão possui sete membros, nomeados pela Presidente, de reconhecida
idoneidade e conduta ética, identificados com a defesa da democracia e da
institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos
(auxiliados, cada um, por dois assessores) e terá duração de 2 anos a partir de
sua instalação, devendo apresentar, ao final do período, relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, os
fatos examinados, as conclusões e recomendações.
Em 16 de maio de 2012 foi, oficialmente, instalada a Comissão
Nacional da Verdade, sendo nomeados membros: (i) Cláudio Fonteles (Procurador
Geral da República entre 2003 e 2005); (ii) Gilson Dipp (Ministro do STJ e,
desde 2011, do TSE); (iii) José Carlos Dias (Ministro da Justiça no governo de
Fernando Henrique Cardoso); (iv) José Paulo Cavalcante Filho (advogado e
consultor); (v) Maria Rita Kehl (psicanalista e cronista); (vi) Paulo Sérgio
Pinheiro (diplomata e professor da USP) e (vii) Rosa Maria Cardoso da Cunha
(advogada criminalista e professora).
Durante a cerimônia de instalação, a Presidente Dilma Rousseff
afirmou que a Comissão não teria caráter revanchista, que seriam respeitados os
pactos nacionais (referência principalmente à Lei da Anistia, objeto de
controvérsias e polêmicas entre setores da sociedade civil e militares) e que a
Comissão seria de Estado, e não de governo. Além disso, em entrevista concedida
à Folha, no mesmo dia da instalação, o membro Gilson Dipp afirmou que a
Comissão não tem poder para revisar a Lei da Anistia, vez que não possui poder
jurisdicional nem persecutório, e que o STF já decidiu pela não revisão da Lei.
Diante desse contexto, vários foram os argumentos favoráveis à Comissão
e seus objetivos. Nesse sentido, de acordo com Celso Lafer, a Comissão tem como
finalidade a busca da verdade factual a qual contribuirá com a História, embora
não seja História. Isto é, o seu papel seria o de constituir um local de memória
da verdade factual da violação de Direitos Humanos, no Brasil, no período
determinado. E a memória, diferente da História, escolhe, seleciona e é vivida
no presente com preocupação para o futuro. Assim, a Comissão deverá indicar as
consequências das ações relativas àquele período, para a vida política
democrática, em contraposição à ocultação dos atos, pelo Estado e parte da
sociedade, o que contribuirá para o fortalecimento do princípio da
transparência. Para Fábio Konder Comparato, a importância da Comissão está
resumida na frase “aqueles que se recusam a lembrar o passado estão condenados
a repeti-lo”.
Representantes de diversos setores da sociedade civil, como
engenheiros, advogados (por meio da OAB nacional), juízes, artistas,
intelectuais, educadores e cineastas apoiaram a instauração da Comissão.
Por outro lado, há também críticas à Comissão. Dentre elas,
podemos citar a crítica feita por Ives Gandra Silva Martins, quem sustenta não
ser adequada a ausência de historiadores entre os membros, já que a finalidade
é “resgatar a verdade histórica de um período de 42 anos”. Afirma, ainda, que a
Comissão é seletiva ao não se propor, segundo ele, examinar as ações praticadas
pelos guerrilheiros e, por fim, que a constituição e instalação da mesma são
inoportunas, pois não será possível alcançar nenhum resultado profícuo, mas apenas
“remoer feridas” (destaca-se que não há, até o presente momento, consenso
expresso, entre os membros, sobre quais atos deverão ser apurados; se todas as
violações aos Direitos Humanos; se apenas aquelas perpetradas pelos
representantes do Estado).
Outra crítica à Comissão é feita por João Mellão Neto, o qual
afirma, inicialmente, que o próprio nome está equivocado por usar o termo
“Verdade”, ao indagar verdade de quem. Também sustenta que a Comissão, como
está formada (membros e objetivos), representa a “esquerda” e que não fará uma
investigação ampla e adequada, não se verificando os atos de violência de ambos
os lados.
Luiza Erundina criticou a ausência de um debate mais amplo, por
meio de audiências públicas e discussões de especialistas, para a constituição
da Comissão e, também, que a mesma não tem orçamento próprio o que limitará a
sua atuação.
Já alguns militares entendem que a Comissão, como está formada, é
parcial e significa um gesto de revanchismo e agressão às Forças Armadas.
Ainda, até mesmo alguns ativistas de Direitos Humanos criticaram a
Comissão por ela não deter poder de punição, o que representaria um
enfraquecimento da mesma, não contribuindo para o alcance da justiça. Por
último, há críticas com relação à duração da Comissão, a qual não seria
suficiente para um trabalho adequado.
Ante essas considerações, percebe-se que os argumentos favoráveis
e contrários, e as críticas são de diversas naturezas, os quais variam desde a
constituição em si da Comissão até a forma como essa foi realizada.
Em que pesem os argumentos contrários à constituição, é necessário
sustentar que a investigação, a revelação e o reconhecimento detalhado dos
fatos ocorridos no período autoritário são imprescindíveis, e mesmo
inevitáveis, para o aprofundamento e consolidação de uma Nação democrática.
Nessa linha, não é coerente existir um Estado, que se objetiva democrático, não
conhecer e admitir seu passado e suas consequências, pois, a partir desses
passos, a busca de meios e opções para efetiva construção e fortalecimento da
democracia é mais fundamentada e madura.
Desse modo, no contexto brasileiro, a constituição da Comissão
Nacional da Verdade representa, sim, um evento imperativo, do qual resulta a
devida passagem para um estágio mais consistente da democracia.
Ressalta-se,
contudo, que, de fato, trata-se de um tema delicado, até mesmo, por sua
relativa proximidade temporal com o período em referência. Assim, a sua
constituição deveria procurar, ao máximo, a minimização de equívocos e, nesse
aspecto, cumpre destacar, preliminarmente, que o nome dado “Comissão Nacional
da Verdade”, embora seja igual ou similar aos dados em alguns outros países, é,
no mínimo, pretensioso, e não caracteriza, de modo mais adequado, a História
nem a memória do período.
Além disso, a despeito de os membros da Comissão atenderem, em
grande parte, às exigências para suas nomeações, o argumento de não haver não
haver pelo menos um historiador, dentre aqueles, é, sim, válido, vez que a
missão em questão está, essencialmente, relacionado à História. Também são
válidas as críticas quanto (i) à ausência de orçamento próprio, pois realmente
pode limitar a atuação da Comissão, (ii) ao argumento de que deveria ter havido
um debate mais amplo, principalmente no seio da sociedade civil, antes da
constituição da Comissão e, ainda, (iii) ao de que o tempo para a conclusão dos
trabalhos (2 anos) não é suficiente para um trabalho apropriado.
Quanto às críticas de que essa é uma Comissão de “esquerda”, estas
parecem não prosperar, vez que há membros com diferentes experiências e ações
ao longo de suas carreiras, assim como há aqueles que foram indicados para
função política de direção em governos considerados de direita e outros em de
esquerda. Portanto, tal crítica, em princípio, não se aprofunda, resultando, em
geral, em comentários sem maiores fundamentações.
No que diz respeito à crítica de que a investigação deveria ser
ampla (abranger os dois lados), cabe ressaltar que não há dúvidas, em caso de
exame, de que os atos de violência perpetrados pelos representantes do Estado
devem ser averiguados. Isto porque o fundamento básico da Comissão é reconhecer
os fatos pretéritos; buscar, por meio desse ato, evitar a repetição dos mesmos;
e, com efeito, aprimorar a democracia, ou seja, a missão da Comissão é,
fundamentalmente, voltada para o futuro, para a consolidação do regime
democrático. Assim, deve-se admitir que os atos de violência e repressão
praticados pelo Estado e seus representantes, de fato, minaram a democracia,
sendo, portanto, devida sua investigação, em conformidade com os preceitos e
missão da Comissão.
Por outro lado, a controvérsia maior, nesse ponto, está em relação
aos atos praticados pelos guerrilheiros; se devem ou não ser averiguados também.
Ora, quanto aos objetivos e atos dos guerrilheiros não é tão fácil perceber se
eram autoritários ou não, se comparados aos dos representantes do Estado, o que
iria de encontro à construção democrática. Além disso, sempre que o Estado faz
uso de seus meios para impor sua vontade, pela força e repressão, não há
dúvidas de que praticou atos contrários à democracia e justamente por quem deferia
defendê-la, já no caso oposto, o dos guerrilheiros, a situação não é tão
cristalina, ou seja, os riscos à democracia não são tão evidentes, sendo,
aparentemente, mais especulações do que algo concreto.
Por tudo o
que foi exposto, parece que, em um primeiro momento, por mais que a Comissão possa
investigar ambos os lados, a concentração dos esforços, em razão da missão da
Comissão, deve ser orientada para averiguação dos atos praticados pelos
representantes do Estado.
Diante de todo o exposto, conclui-se que a constituição da
Comissão Nacional da Verdade representa uma necessidade para o avanço
democrático brasileiro e deveria, sim, ser realizada, embora sua forma, de modo
geral, isto é, o tempo (sua duração), membros, processo de constituição,
termos, não são os mais adequados, possuindo equívocos que podem prejudicar o
resultado final a ser apresentado. Nesse sentido, cresce a importância, da
sociedade, como um todo, participar ativa, constante e responsavelmente dos
trabalhos da Comissão.