Texto apresentado na aula do dia 08/05/12
Por Isabela Sardinha
Lisboa Leite
A relação entre seres humanos e animais de estimação é
muito antiga. Domesticados, os bichos tornaram-se verdadeiros companheiros de
seus donos, suprindo-lhes a necessidade de atenção e afeto. Contudo, essa
ligação nem sempre é equilibrada, e a noção de pleno domínio do ser humano
sobre o animal acaba, muitas vezes, em violência. Por tudo isso, é preciso
dizer com muita clareza: maus tratos a animais é crime, e deve ser denunciado.
Com a Revolução Neolítica, que ocorreu no período da
Pedra Polida (10000 a 5000 a.C.), o homem começou a domesticar animais com o
intuito de melhorar a capacidade de realizar tarefas, e portanto, ter maiores
chances de sobrevivência. A partir da Idade Média a domesticação de certos
bichos se tornou sinônimo de luxo nos castelos, e já na atualidade, percebe-se
a criação de animais domésticos como uma prática disseminada. É preciso notar
que o animal doméstico exerce uma função social importante no momento em que
supre carências humanas, exerce a função de guia, de guarda, e outras atividades
que complementam as do próprio dono. Neste sentido, esses seres corroboram não
só para o equilíbrio ecológico, mas também para o desenvolvimento e progresso
da sociedade contemporânea.
Recentemente, tivemos notícia de agressões brutais e
cruéis a animais de estimação que, indefesos, acabaram reféns de maldade humana.
No dia 2 de novembro de 2011, o cachorro rottweiller Lobo foi preso ao carro do
seu dono, o mecânico Cláudio César Messias,
e arrastado por vários quarteirões da cidade de Piracicaba, São Paulo. O
cachorro foi acompanhado por 15 dias, chegou a ter uma das patas amputadas, mas
não resistiu à infecção e morreu. Em outra
ocorrência, um cachorro da raça
yorkshire que vivia rotinas diárias de tortura foi espancado até a morte no dia
13 de novembro do ano passado na cidade de Formosa, interior de Goiás. As cenas
da agressão, gravadas por uma vizinha, mostram a enfermeira Camila Corrêa jogando o
animal para o alto, chutando o cão contra a parede e o prendendo dentro de um
balde.
Os animais são sujeitos de direitos, visto que são tutelados
pelo Estado e representados em Juízo pelo Ministério Público ou pelos representantes
das sociedades protetoras de animais. É o que garante o Decreto Federal nᵒ
24.645/34 que dá proteção legal aos animais desde os
tempos de Getúlio Vargas,
além de elencar um extensivo rol das práticas consideradas maus-tratos. Há
ainda a Lei Federal nᵒ 9.605/98 conhecida como “Lei dos Crimes Ambientais”, que
em seu artigo 32 comina pena de 3 meses a 1 ano de prisão e multa, podendo ser
aumentada de 1/6 a 1/3 se ocorrer a morte do animal (silvestre, doméstico ou
domesticado, nativo ou exótico) vítima de maus-tratos, ato de abuso, de
ferimentos ou mutilação. No
mesmo sentido, podem ser citadas a Constituição Federal de 1988 que em seu
artigo 225, parágrafo 1ᵒ, inciso VII, veda as práticas que submetam os animais
a crueldade, e a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela
UNESCO em sessão realizada em Bruxelas no dia 27 de janeiro de 1978, e que
enuncia os direitos dos animais em 14 artigos.
As atuais legislações que abordam a questão dos
maus-tratos a animais domésticos preveem uma pena considerada branda por alguns
especialistas. Assim, é comum ver agressores que não cumpriram sua detenção. O
que ocorre na maioria dos casos é a chamada transação penal, situação em que se
substitui uma pena de detenção por uma restritiva de direitos ou pagamento de
multa. Diante desse cenário, tem surgido um Projeto de Lei que visa desvincular
o crime de maus-tratos, abandono e morte de animais da lei de crimes ambientas,
e gerar punição com maior seriedade. A Lei Lobo, que carrega o nome do cachorro
vítima de violência, é um Projeto de Lei de Iniciativa Popular, instrumento
utilizado pela sociedade para sociedade.
Outro mecanismo que se encontra à disposição da
população e que pode ser bastante válido é a denuncia. Os atos de abuso e maus-tratos
por configurarem crime ambiental devem ser denunciados e, para tanto, é preciso
que haja a certeza do enquadramento do caso e maior quantidade de informações e
provas possíveis. Além da disponibilidade da polícia através do 190 e do Disque
Denuncia, podem ser procuradas a Delegacia de Polícia, onde será aberto um
Termo Circunstanciado, ou até mesmo a Promotoria de Justiça (Ministério Público
Estadual) da cidade, onde será protocolada uma representação. De qualquer
forma, a pessoa que faz a denuncia figura como testemunha do caso, sendo que
quem denuncia, na prática, é o Estado. Todos os procedimentos acima relatados
demonstram que a sociedade muito pode fazer para combater as agressões a
animais e, neste sentido, a conscientização de que seres humanos e demais
animais estão estreitamente relacionados é a chave de tudo. É a melhor maneira
de combater esse tipo de crime.
O critério da espécie para a diferenciação de
tratamento é um critério eminentemente falho. Muitos possuem dificuldades em
aceitar, mas as diferenças entre nós e os animais é muito mais uma questão de
grau do que de espécie propriamente dita. Neste sentido, muitas linhas
divisórias que foram fixadas entre os seres humanos e os animais têm se
mostrado insipientes. O argumento de que apenas seres humanos usavam
ferramentas, por exemplo, foi superado pelo descobrimento de um pica-pau das
ilhas Galápagos que utiliza espinhos de cactos para extrair insetos de buracos
em árvores. O argumento de que, no entanto, os seres humanos fossem os únicos
capazes de produzir suas próprias ferramentas também pôde ser afastado pela
descoberta de chipanzés, nas florestas da Tanzânia, que mascam folhas para
produzir uma esponja capaz de sugar água, além de limparem galhos para
utiliza-los na captura de insetos. O domínio humano da linguagem é outro
preceito prontamente rebatido pelos indícios de uma linguagem complexa entre
baleias e golfinhos, ou pelo aprendizado da linguagem de sinais de surdos pelos
chipanzés, orangotangos e gorilas. Enfim, o abismo entre os seres humanos e os
animais é um pressuposto altamente questionável, mas ainda que ele exista e
seja amplo, não habilita nenhum tipo de prioridade de consideração[1].
Ao
admitirmos o princípio da igualdade como uma base sólida para as relações com
os outros seres de nossa própria espécie, é preciso reconhecê-lo como base
moral para as relações com aqueles que divergem de nós, ou seja, os animais não-humanos[2]. Jeremy
Bentham, o criador do utilitarismo moderno, foi um dos que admitiu a aplicação
do princípio para além da nossa própria espécie e, em relação a isso, notou:
Talvez
chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos
dos quais jamais poderiam ter sido privados [...] Os franceses já descobriram
que o escuro da pele não é motivo para que um ser humano seja abandonado,
irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se
reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são motivos igualmente insuficientes
para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a
linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar?
Mas, para lá de toda comparação possível, um cavalo ou um cão adultos são muito
mais racionais, além de bem mais sociáveis, do que um bebê de um dia, uma
semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim;
que importância teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de
raciocinar, ou se conseguem falar, mas, sim, se são passíveis de sofrimento[3].
Não podemos sentir a dor do outro, seja ele
humano ou não; o que nos faz constatar o sofrimento, por exemplo, de uma
criança ao cair, é a maneira como ela se comporta. De forma semelhante, os
animais, mesmo não fazendo uso do nosso recurso linguístico, também apresentam
comportamentos sugestivos de dor, e esses comportamentos são suficientes para
detectar o sofrimento. Além disso, as grandes semelhanças, em termo de sistema
nervoso, observadas entre os vertebrados e a relativa antiguidade, em termos
evolutivos, das partes do sistema humano referentes às sensações dolorosas,
tornam admissível que a capacidade dos animais de sentir dor seja semelhante à
nossa. De fato, se um ser sofre, não pode haver motivos que no levem a recusar
e desconsiderar esse sofrimento. Neste sentido, o limite da sensibilidade (e
não o da inteligência, por exemplo) é o que deve ser tomado por parâmetro na
preocupação com o outro e seus interesses.[4] A
dor e o sofrimento são coisas ruins, e devem ser evitadas independentemente da
espécie, raça, sexo ou credo.
É preciso
ressaltar que os excessos fazem mal a qualquer relacionamento e, sem dúvidas, a
afirmação vale também para as relações entre o ser humano e seu animal de
estimação. Recentemente, a notícia de um gato que herdou dez milhões de euros
ganhou destaque na mídia, todavia, absurdos
históricos revelam que é antigo o cuidado excessivo de animais. Incitatus,
cavalo do imperador Calígula, era enfeitado com um colar de pedras preciosas,
possuía uma guarda pretoriana, foi nomeado senador romano, designado sacerdote,
e ainda ganhou como homenagem de seu dono um palácio construído de mármore. É
claro que esses exemplos são casos extremos, no entanto, os exageros no
tratamento de um bicho podem estar em dar atenção ao animal como se ele fosse
gente, mudar a cor dos pelos, fazer chapinha, passear dentro de carro de bebê e
qualquer tipo de atitude que para o próprio animal não faz o menor sentido. A
relação entre uma pessoa e seu animal de estimação não deve ser sobrecarregada
de cuidados excessivos, e sim de uma consciência em respeitar a natureza do
bicho.
Exageros não, respeito sim: é o entendimento que
precisa ser plantado e cultivado na atual sociedade. Lembrando que respaldar a
causa dos animais não exclui a necessidade e a possibilidade de amparo aos
casos de violência e dor humana. As duas condutas precisam e devem ser levadas a
diante de forma paralela, de modo que nenhum direito da pessoa humana deixe de
ser salvaguardado em prol dos direitos dos animais, ou vice versa. A indagação
que comumente surge, de que como é possível alguém perder tempo tratando da
igualdade dos animais, enquanto a igualdade é negada a tantos seres humanos,
apenas reflete o preconceito popular contra o fato de se levar a sério os
direitos dos animais. Um preconceito tão improcedente quanto aquele que leva os
brancos a menosprezarem os interesses dos negros. Um preconceito que deve ser
combatido.
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