terça-feira, 15 de maio de 2012

ATIREI O PAU NO GATO… E O GATO MORREU! : Os animais e seus direitos na atual sociedade.


Texto apresentado na aula do dia 08/05/12
Por Isabela Sardinha Lisboa Leite

A relação entre seres humanos e animais de estimação é muito antiga. Domesticados, os bichos tornaram-se verdadeiros companheiros de seus donos, suprindo-lhes a necessidade de atenção e afeto. Contudo, essa ligação nem sempre é equilibrada, e a noção de pleno domínio do ser humano sobre o animal acaba, muitas vezes, em violência. Por tudo isso, é preciso dizer com muita clareza: maus tratos a animais é crime, e deve ser denunciado.
Com a Revolução Neolítica, que ocorreu no período da Pedra Polida (10000 a 5000 a.C.), o homem começou a domesticar animais com o intuito de melhorar a capacidade de realizar tarefas, e portanto, ter maiores chances de sobrevivência. A partir da Idade Média a domesticação de certos bichos se tornou sinônimo de luxo nos castelos, e já na atualidade, percebe-se a criação de animais domésticos como uma prática disseminada. É preciso notar que o animal doméstico exerce uma função social importante no momento em que supre carências humanas, exerce a função de guia, de guarda, e outras atividades que complementam as do próprio dono. Neste sentido, esses seres corroboram não só para o equilíbrio ecológico, mas também para o desenvolvimento e progresso da sociedade contemporânea.
Recentemente, tivemos notícia de agressões brutais e cruéis a animais de estimação que, indefesos, acabaram reféns de maldade humana. No dia 2 de novembro de 2011, o cachorro rottweiller Lobo foi preso ao carro do seu dono, o mecânico Cláudio César Messias, e arrastado por vários quarteirões da cidade de Piracicaba, São Paulo. O cachorro foi acompanhado por 15 dias, chegou a ter uma das patas amputadas, mas não resistiu à infecção e morreu. Em outra ocorrência, um cachorro da raça yorkshire que vivia rotinas diárias de tortura foi espancado até a morte no dia 13 de novembro do ano passado na cidade de Formosa, interior de Goiás. As cenas da agressão, gravadas por uma vizinha, mostram a enfermeira Camila Corrêa jogando o animal para o alto, chutando o cão contra a parede e o prendendo dentro de um balde.
Os animais são sujeitos de direitos, visto que são tutelados pelo Estado e representados em Juízo pelo Ministério Público ou pelos representantes das sociedades protetoras de animais. É o que garante o Decreto Federal nᵒ 24.645/34 que dá proteção legal aos animais desde os tempos de Getúlio Vargas, além de elencar um extensivo rol das práticas consideradas maus-tratos. Há ainda a Lei Federal nᵒ 9.605/98 conhecida como “Lei dos Crimes Ambientais”, que em seu artigo 32 comina pena de 3 meses a 1 ano de prisão e multa, podendo ser aumentada de 1/6 a 1/3 se ocorrer a morte do animal (silvestre, doméstico ou domesticado, nativo ou exótico) vítima de maus-tratos, ato de abuso, de ferimentos  ou mutilação. No mesmo sentido, podem ser citadas a Constituição Federal de 1988 que em seu artigo 225, parágrafo 1ᵒ, inciso VII, veda as práticas que submetam os animais a crueldade, e a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela UNESCO em sessão realizada em Bruxelas no dia 27 de janeiro de 1978, e que enuncia os direitos dos animais em 14 artigos.
As atuais legislações que abordam a questão dos maus-tratos a animais domésticos preveem uma pena considerada branda por alguns especialistas. Assim, é comum ver agressores que não cumpriram sua detenção. O que ocorre na maioria dos casos é a chamada transação penal, situação em que se substitui uma pena de detenção por uma restritiva de direitos ou pagamento de multa. Diante desse cenário, tem surgido um Projeto de Lei que visa desvincular o crime de maus-tratos, abandono e morte de animais da lei de crimes ambientas, e gerar punição com maior seriedade. A Lei Lobo, que carrega o nome do cachorro vítima de violência, é um Projeto de Lei de Iniciativa Popular, instrumento utilizado pela sociedade para sociedade.
Outro mecanismo que se encontra à disposição da população e que pode ser bastante válido é a denuncia. Os atos de abuso e maus-tratos por configurarem crime ambiental devem ser denunciados e, para tanto, é preciso que haja a certeza do enquadramento do caso e maior quantidade de informações e provas possíveis. Além da disponibilidade da polícia através do 190 e do Disque Denuncia, podem ser procuradas a Delegacia de Polícia, onde será aberto um Termo Circunstanciado, ou até mesmo a Promotoria de Justiça (Ministério Público Estadual) da cidade, onde será protocolada uma representação. De qualquer forma, a pessoa que faz a denuncia figura como testemunha do caso, sendo que quem denuncia, na prática, é o Estado. Todos os procedimentos acima relatados demonstram que a sociedade muito pode fazer para combater as agressões a animais e, neste sentido, a conscientização de que seres humanos e demais animais estão estreitamente relacionados é a chave de tudo. É a melhor maneira de combater esse tipo de crime.
O critério da espécie para a diferenciação de tratamento é um critério eminentemente falho. Muitos possuem dificuldades em aceitar, mas as diferenças entre nós e os animais é muito mais uma questão de grau do que de espécie propriamente dita. Neste sentido, muitas linhas divisórias que foram fixadas entre os seres humanos e os animais têm se mostrado insipientes. O argumento de que apenas seres humanos usavam ferramentas, por exemplo, foi superado pelo descobrimento de um pica-pau das ilhas Galápagos que utiliza espinhos de cactos para extrair insetos de buracos em árvores. O argumento de que, no entanto, os seres humanos fossem os únicos capazes de produzir suas próprias ferramentas também pôde ser afastado pela descoberta de chipanzés, nas florestas da Tanzânia, que mascam folhas para produzir uma esponja capaz de sugar água, além de limparem galhos para utiliza-los na captura de insetos. O domínio humano da linguagem é outro preceito prontamente rebatido pelos indícios de uma linguagem complexa entre baleias e golfinhos, ou pelo aprendizado da linguagem de sinais de surdos pelos chipanzés, orangotangos e gorilas. Enfim, o abismo entre os seres humanos e os animais é um pressuposto altamente questionável, mas ainda que ele exista e seja amplo, não habilita nenhum tipo de prioridade de consideração[1].
Ao admitirmos o princípio da igualdade como uma base sólida para as relações com os outros seres de nossa própria espécie, é preciso reconhecê-lo como base moral para as relações com aqueles que divergem de nós, ou seja, os animais não-humanos[2]. Jeremy Bentham, o criador do utilitarismo moderno, foi um dos que admitiu a aplicação do princípio para além da nossa própria espécie e, em relação a isso, notou:
Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados [...] Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser humano seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar? Mas, para lá de toda comparação possível, um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, do que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim; que importância teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas, sim, se são passíveis de sofrimento[3].
 Não podemos sentir a dor do outro, seja ele humano ou não; o que nos faz constatar o sofrimento, por exemplo, de uma criança ao cair, é a maneira como ela se comporta. De forma semelhante, os animais, mesmo não fazendo uso do nosso recurso linguístico, também apresentam comportamentos sugestivos de dor, e esses comportamentos são suficientes para detectar o sofrimento. Além disso, as grandes semelhanças, em termo de sistema nervoso, observadas entre os vertebrados e a relativa antiguidade, em termos evolutivos, das partes do sistema humano referentes às sensações dolorosas, tornam admissível que a capacidade dos animais de sentir dor seja semelhante à nossa. De fato, se um ser sofre, não pode haver motivos que no levem a recusar e desconsiderar esse sofrimento. Neste sentido, o limite da sensibilidade (e não o da inteligência, por exemplo) é o que deve ser tomado por parâmetro na preocupação com o outro e seus interesses.[4] A dor e o sofrimento são coisas ruins, e devem ser evitadas independentemente da espécie, raça, sexo ou credo.
É preciso ressaltar que os excessos fazem mal a qualquer relacionamento e, sem dúvidas, a afirmação vale também para as relações entre o ser humano e seu animal de estimação. Recentemente, a notícia de um gato que herdou dez milhões de euros ganhou destaque na mídia, todavia, absurdos históricos revelam que é antigo o cuidado excessivo de animais. Incitatus, cavalo do imperador Calígula, era enfeitado com um colar de pedras preciosas, possuía uma guarda pretoriana, foi nomeado senador romano, designado sacerdote, e ainda ganhou como homenagem de seu dono um palácio construído de mármore. É claro que esses exemplos são casos extremos, no entanto, os exageros no tratamento de um bicho podem estar em dar atenção ao animal como se ele fosse gente, mudar a cor dos pelos, fazer chapinha, passear dentro de carro de bebê e qualquer tipo de atitude que para o próprio animal não faz o menor sentido. A relação entre uma pessoa e seu animal de estimação não deve ser sobrecarregada de cuidados excessivos, e sim de uma consciência em respeitar a natureza do bicho.
Exageros não, respeito sim: é o entendimento que precisa ser plantado e cultivado na atual sociedade. Lembrando que respaldar a causa dos animais não exclui a necessidade e a possibilidade de amparo aos casos de violência e dor humana. As duas condutas precisam e devem ser levadas a diante de forma paralela, de modo que nenhum direito da pessoa humana deixe de ser salvaguardado em prol dos direitos dos animais, ou vice versa. A indagação que comumente surge, de que como é possível alguém perder tempo tratando da igualdade dos animais, enquanto a igualdade é negada a tantos seres humanos, apenas reflete o preconceito popular contra o fato de se levar a sério os direitos dos animais. Um preconceito tão improcedente quanto aquele que leva os brancos a menosprezarem os interesses dos negros. Um preconceito que deve ser combatido.


[1] SINGER, Peter. Ética Prática. 2ª edição, São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998, passim.
[2] Ibid., p.65.
[3] BENTHAM, 1789 apud SINGER, 1998, p.66-67.
[4] Ibid., passim.

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