sexta-feira, 4 de maio de 2012

Legalizar: alternativa a uma guerra em que só há perdedores

Texto apresentado no dia 24/05/12
Por Rafael de Acypreste e Augusto Valle


Nos dias 14 e 15 de abril, em Cartagena, Colômbia, a Sexta Edição da Cúpula das Américas debaterá, pela primeira vez em nível continental, a necessidade de mudar a atual política antidrogas e o Brasil tem um papel importante a cumprir nesse encontro.
A dependência às drogas pode ser uma trágica perda de potencial para o indivíduo envolvido, mas também é extremamente prejudicial para sua família, sua comunidade e, em conjunto, para toda a sociedade. E são por esses fatores que devemos, enquanto membros da sociedade, levantar um debate de forma mais aberta e plural, buscando livrar-se de preconceitos.
De acordo com o coronel Jorge da Silva, ex-chefe do Estado-Maior Geral da PMERJ, “O governo brasileiro precisa assumir maior protagonismo nas discussões sobre a questão no mundo. O modelo vigente, da radicalização repressiva, tem produzido os efeitos desastrosos conhecidos. Basta contar os mortos. O ponto de partida há de ser tomar o usuário como destinatário dos serviços de saúde e não da polícia”.
Só no México morreram 50 mil pessoas desde que o presidente Felipe Calderón declarou guerra contra as drogas em dezembro de 2006. Passados mais de 40 anos desde que Richard Nixon empreendeu em 1971 a "guerra contra as drogas" e criou a Força Administrativa de Narcóticos (DEA, na sigla em inglês), Washington gastou mais de US$ 2,5 trilhões e prendeu mais de 40 milhões de pessoas por crimes de narcotráfico e posse de substâncias ilícitas, sem os resultados esperados.

As drogas não são exclusividade da Modernidade
O debate atual sobre a legalização de drogas começa por um traçado histórico do uso da maconha e do posicionamento do Estado frente a essa prática. O primeiro ponto que merece destaque é que o consumo de drogas é tão antigo quanto a própria organização humana em sociedade. Seu uso é muito variado, de modo que o consumo pode estar ligado a práticas religiosas, medicinais ou mesmo hedonistas.
No Brasil, a Cannabis foi trazida pelos escravos africanos a partir de 1549, apesar de a fibra de cânhamo já ser utilizada pelos portugueses – para a fabricação de cordas, por exemplo. No século XVIII o cultivo da planta passou a ser preocupação da Coroa, que o incentivava devido a interesses econômicos. Isso já nos dá uma pista para entender as decisões de criminalização e, quanto ao uso como droga, é sabido que as camadas socioeconômicas mais desfavorecidas faziam uso da maconha, mas não chamavam a atenção da classe dominante branca.
No final do século XIX, intensifica-se o uso medicinal da planta e, na busca pelo monopólio de tais psicotrópicos, os médicos passaram a perseguir curandeiros e herbolários, excluindo todas as formas de terapia não aceitas pela medicina científica. A essa época, o usuário de drogas era considerado um doente que ameaçava a saúde, o bem-estar e a integridade do resto da população, por isso se inicia um posicionamento sanitarista, que marginalizava e interditava (internava) os usuários de psicotrópicos.
Concomitante a esse processo de “limpeza social-sanitária”, no âmbito das ciências sociais surge a antropologia criminal, fruto do modelo determinista. A guerra contra as drogas era marcada por um caráter racial e xenófobo presente nas campanhas políticas e publicitárias. No Brasil a maconha era diretamente associada às classes baixas, aos negros e mulatos e à bandidagem.
Nesse contexto constata-se – há muito – a criminalização da pobreza, explicada fundamentalmente pela característica seletiva do sistema penal. Este é uma construção política dos atores do poder, que constroem o direito penal com uma intencionalidade chamada por alguns de “velada”. Mas não há nada de intencionalidade velada no fato de o direito penal ter um caráter meramente punitivo, que estigmatiza determinado sujeito classificado de “delinquente”, o qual já é marginalizado antes mesmo de qualquer delito.
O “delinquente” é o jovem negro, pobre, desempregado, com baixa escolaridade e, em verdade, um sujeito-quase-objeto que não tem seus direitos fundamentais assegurados. Esse personagem é o alvo do sistema penal, que viola ainda mais seus direitos, numa busca por seu “corpo dócil” – como bem explicou Foucault –, para se encaixar no sistema pré-estabelecido imutável e hermético que é a sociedade utopiada pelo “Direito”.
Voltando à trajetória histórica, a partir de 1930, a repressão ao uso da maconha ganha força com a II Conferência Internacional do Ópio – realizada no ano de 1924 em Genebra –, que condenou essa droga. Em 1938 foi proibido totalmente o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de maconha por particulares no Brasil. Já em 1961 vem a Convenção Única de Entorpecentes, da Organização das Nações Unidas (ONU), considerando a maconha uma droga extremamente prejudicial à saúde e à coletividade, equiparando-a à heroína, o que é uma falsidade em termos científicos atuais.
Durante o regime militar no Brasil, a repressão aumentou, como se pode verificar, por exemplo, no decreto-lei 385 de 1968. Tal ato equiparou a pena do usuário à do traficante, desconsiderando o caráter autodestrutivo do primeiro, apesar de nosso ordenamento permitir outras formas de autodestruição (usar drogas lícitas ou se prostituir), que são reprovadas por preconceitos morais e religiosos, carentes de critérios jurídicos. Justamente por esse caráter, Roberto Lyra Filho dizia que a criminalização do usuário e da usuária de drogas deveria ceder espaço para outros tipos de pressão não coativa (moral, religiosa ou médica).
É o caminho que o Brasil vem lentamente percorrendo, imputando o seguinte, com a Lei nº 11.343/2006, conhecida como lei de entorpecentes:
Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

A prima bastarda
Apesar desses avanços, a inflação do direito penal em geral e, nesse caso específico, a criminalização de drogas como a maconha têm resultados desastrosos na sociedade. Tabaco e álcool possuem efeitos mais nocivos que a Cannabis ao se considerar os efeitos sociais da droga, o que nos dá outro sinal de que a proibição atende interesses morais, religiosos e econômicos e não de saúde pública e bem estar social. Abordemos os diversos aspectos que caracterizam esse desastre Estatal em relação à política antidrogas.
Em primeiro lugar, como a própria análise histórica mostra, as drogas serão utilizadas inevitavelmente pelos seres humanos e criminalizá-las é perder o controle sobre a produção, o comércio e o consumo, que não desaparecem, apenas se tornam ilegais. O sistema social exige vazadouros para dissolver suas tensões e as pessoas, em geral, procuram meios de “escapar” da realidade.  Além do mais, as drogas – como fruto proibido que são – estimulam a libido, no mais amplo sentido da palavra, adquirindo valor libertário e contestador, servindo de protesto independentemente da natureza objetivamente nociva. É mais interessante pensar e construir estratégias para diminuição dos riscos e danos das drogas – lembre-se que o Brasil é exemplo mundial na redução do uso de tabaco, por exemplo – mediante políticas públicas bem elaboradas, que envolvem prevenção, regulação, vigilância nos processos de produção e comercialização, educação e sistemas públicos de recuperação e saúde.
Em segundo lugar, a criminalização só beneficia quem age “fora da lei”, criando o mercado ilegal de drogas e gerando violência, corrupção, mortes e sonegação de impostos. Quem financia tudo isso não é o usuário que compra, mas o Estado que, por meio da omissão e proibição, abre caminho para todo um sistema sustentado na criminalidade. Os riscos e danos crescem também pelo fato de não ser possivel uma conscientização do uso correto de um produto ilícito. 
Com a descriminalização todo o mercado poderia ser regulado, com controle de qualidade, arrecadação de impostos e sem resquícios violentos no processo de produção e comercialização. A arrecadação de impostos merece especial atenção, pois estes podem ser revertidos para a saúde e educação públicas. Além de aumentar essa arrecadação, reduzem-se os custos com policiamento e sistema penal, o que pode resultar em ainda mais políticas públicas para assegurar direitos sociais.
Sobre o controle, vejamos o exemplo da Holanda, onde é permitida a venda de Cannabis em lojas que seguirem as seguintes regras: não pode haver propaganda, venda de drogas pesadas, venda para menores de 18 anos, transtorno público e comercialização de mais de 5 gramas por compra, além de ser proibida a venda de bebidas alcoólicas no estabelecimento, não se poder estocar mais do que 500 gramas e, em algumas cidades, a obrigatoriedade de estas lojas estarem a uma distância mínima de escolas e da fronteira. Muitos dos temores daqueles que condenam o uso da maconha são resolvidos com medidas nesse sentido da regulação.
Ao proibir, desconsideramos também os efeitos terapêuticos que a maconha pode ter, lembrando que o Brasil admite em tese seu uso para fins medicinais, científicos e uso ritualístico-religioso:
Art. 2o  Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.
Parágrafo único.  Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas.[1]

Outro argumento recorrente é de que a maconha é porta de entrada para outras drogas mais nocivas. Ideia falsa. A porta de entrada é a condenação à ilegalidade e ao mercado obscuro, caso contrário, procuraríamos drogas com características psicotrópicas semelhantes. O perfil psicotrópico da maconha (psicodisléptica, que causam, entre outros, alucinações) não se assemelha, por exemplo, à cocaína e cafeína, que são drogas psicoanaléptica (estimulantes, que afastam cansaço e fome). Já o álcool e os inalantes são drogas depressoras, chamadas psicolépticas.

A defesa é pela liberdade: de pensar e agir.
É preciso deixar claro que a ideia deste artigo não é defender o uso de drogas, mas racionalizar uma atividade intrínseca às sociedades, utilizando-se de critérios de saúde, segurança e economia públicas. Os efeitos nocivos das diversas drogas não podem ser desconsiderados; a produção e o consumo devem ser regulados; as propagandas de bebidas alcoólicas devem ser repensadas e restringidas (que incentivam o consumo desta droga e ainda contribuem para a disseminação de práticas sexistas e machistas); as políticas públicas de prevenção e promoção de saúde devem ser efetivas e atingir verdadeiramente seus usuários. Do ponto de vista do governo, é possível realizar um controle sanitário eficiente ao se legalizar a maconha? Temos (ou podem ser criados) programas de saúde que tenham resultados satisfatórios para o tratamento da dependência, sem estigmatização ou violação de direitos?
Enfim, legalizar não é banalizar, mas sim encarar o problema de maneira mais eficaz e segura possível. Ficam postas as questões de como é possível fazer isso e como a sociedade precisa se transformar culturalmente, sempre tendo em vistas as condições e realidades sociais e culturais de cada localidade.



[1] Lei nº 11.343/2006

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