Por Rafael de Acypreste e Augusto Valle
Nos dias 14 e 15 de abril, em Cartagena, Colômbia, a Sexta
Edição da Cúpula das Américas debaterá, pela primeira vez em nível continental,
a necessidade de mudar a atual política antidrogas e o Brasil tem um papel
importante a cumprir nesse encontro.
A dependência às drogas pode ser uma trágica perda de
potencial para o indivíduo envolvido, mas também é extremamente prejudicial
para sua família, sua comunidade e, em conjunto, para toda a sociedade. E são
por esses fatores que devemos, enquanto membros da sociedade, levantar um
debate de forma mais aberta e plural, buscando livrar-se de preconceitos.
De acordo com o coronel Jorge da Silva, ex-chefe do
Estado-Maior Geral da PMERJ, “O governo brasileiro precisa assumir maior
protagonismo nas discussões sobre a questão no mundo. O modelo vigente, da
radicalização repressiva, tem produzido os efeitos desastrosos conhecidos.
Basta contar os mortos. O ponto de partida há de ser tomar o usuário como
destinatário dos serviços de saúde e não da polícia”.
Só no México morreram 50 mil pessoas desde que o presidente
Felipe Calderón declarou guerra contra as drogas em dezembro de 2006. Passados
mais de 40 anos desde que Richard Nixon empreendeu em 1971 a "guerra
contra as drogas" e criou a Força Administrativa de Narcóticos (DEA, na
sigla em inglês), Washington gastou mais de US$ 2,5 trilhões e prendeu mais de
40 milhões de pessoas por crimes de narcotráfico e posse de substâncias
ilícitas, sem os resultados esperados.
As drogas não são exclusividade da
Modernidade
O debate atual sobre a legalização de drogas começa por um
traçado histórico do uso da maconha e do posicionamento do Estado frente a essa
prática. O primeiro ponto que merece destaque é que o consumo de drogas é tão
antigo quanto a própria organização humana em sociedade. Seu uso é muito
variado, de modo que o consumo pode estar ligado a práticas religiosas,
medicinais ou mesmo hedonistas.
No Brasil, a Cannabis
foi trazida pelos escravos africanos a partir de 1549, apesar de a fibra de cânhamo
já ser utilizada pelos portugueses – para a fabricação de cordas, por exemplo.
No século XVIII o cultivo da planta passou a ser preocupação da Coroa, que o
incentivava devido a interesses econômicos. Isso já nos dá uma pista para
entender as decisões de criminalização e, quanto ao uso como droga, é sabido
que as camadas socioeconômicas mais desfavorecidas faziam uso da maconha, mas
não chamavam a atenção da classe dominante branca.
No final do século XIX, intensifica-se o uso medicinal da
planta e, na busca pelo monopólio de tais psicotrópicos, os médicos passaram a
perseguir curandeiros e herbolários, excluindo todas as formas de terapia não
aceitas pela medicina científica. A essa época, o usuário de drogas era
considerado um doente que ameaçava a saúde, o bem-estar e a integridade do resto
da população, por isso se inicia um posicionamento sanitarista, que
marginalizava e interditava (internava) os usuários de psicotrópicos.
Concomitante a esse processo de “limpeza social-sanitária”,
no âmbito das ciências sociais surge a antropologia criminal, fruto do modelo
determinista. A guerra contra as drogas era marcada por um caráter racial e
xenófobo presente nas campanhas políticas e publicitárias. No Brasil a maconha
era diretamente associada às classes baixas, aos negros e mulatos e à
bandidagem.
Nesse contexto constata-se – há muito – a criminalização da
pobreza, explicada fundamentalmente pela característica seletiva do sistema
penal. Este é uma construção política dos atores do poder, que constroem o
direito penal com uma intencionalidade chamada por alguns de “velada”. Mas não
há nada de intencionalidade velada no fato de o direito penal ter um caráter
meramente punitivo, que estigmatiza determinado sujeito classificado de
“delinquente”, o qual já é marginalizado antes mesmo de qualquer delito.
O “delinquente” é o jovem negro, pobre, desempregado, com
baixa escolaridade e, em verdade, um sujeito-quase-objeto que não tem seus
direitos fundamentais assegurados. Esse personagem é o alvo do sistema penal,
que viola ainda mais seus direitos, numa busca por seu “corpo dócil” – como bem
explicou Foucault –, para se encaixar no sistema pré-estabelecido imutável e
hermético que é a sociedade utopiada pelo “Direito”.
Voltando à trajetória histórica, a partir de 1930, a
repressão ao uso da maconha ganha força com a II Conferência Internacional do
Ópio – realizada no ano de 1924 em Genebra –, que condenou essa droga. Em 1938
foi proibido totalmente o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de
maconha por particulares no Brasil. Já em 1961 vem a Convenção Única de
Entorpecentes, da Organização das Nações Unidas (ONU), considerando a maconha
uma droga extremamente prejudicial à saúde e à coletividade, equiparando-a à
heroína, o que é uma falsidade em termos científicos atuais.
Durante o regime militar no Brasil, a repressão aumentou,
como se pode verificar, por exemplo, no decreto-lei 385 de 1968. Tal ato equiparou
a pena do usuário à do traficante, desconsiderando o caráter autodestrutivo do
primeiro, apesar de nosso ordenamento permitir outras formas de autodestruição
(usar drogas lícitas ou se prostituir), que são reprovadas por preconceitos
morais e religiosos, carentes de critérios jurídicos. Justamente por esse
caráter, Roberto Lyra Filho dizia que a criminalização do usuário e da usuária
de drogas deveria ceder espaço para outros tipos de pressão não coativa (moral,
religiosa ou médica).
É o caminho que o Brasil vem lentamente percorrendo,
imputando o seguinte, com a Lei nº 11.343/2006, conhecida como lei de
entorpecentes:
Art.
28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer
consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I -
advertência sobre os efeitos das drogas;
II -
prestação de serviços à comunidade;
III
- medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
A prima bastarda
Apesar desses avanços, a inflação do direito penal em geral
e, nesse caso específico, a criminalização de drogas como a maconha têm
resultados desastrosos na sociedade. Tabaco e álcool possuem efeitos mais
nocivos que a Cannabis ao se
considerar os efeitos sociais da droga, o que nos dá outro sinal de que a
proibição atende interesses morais, religiosos e econômicos e não de saúde
pública e bem estar social. Abordemos os diversos aspectos que caracterizam
esse desastre Estatal em relação à política antidrogas.
Em primeiro lugar, como a própria análise histórica mostra,
as drogas serão utilizadas inevitavelmente pelos seres humanos e
criminalizá-las é perder o controle sobre a produção, o comércio e o consumo,
que não desaparecem, apenas se tornam ilegais. O sistema social exige
vazadouros para dissolver suas tensões e as pessoas, em geral, procuram meios
de “escapar” da realidade. Além do mais,
as drogas – como fruto proibido que são – estimulam a libido, no mais amplo
sentido da palavra, adquirindo valor libertário e contestador, servindo de
protesto independentemente da natureza objetivamente nociva. É mais
interessante pensar e construir estratégias para diminuição dos riscos e danos
das drogas – lembre-se que o Brasil é exemplo mundial na redução do uso de
tabaco, por exemplo – mediante políticas públicas bem elaboradas, que envolvem
prevenção, regulação, vigilância nos processos de produção e comercialização,
educação e sistemas públicos de recuperação e saúde.
Em segundo lugar, a criminalização só beneficia quem age
“fora da lei”, criando o mercado ilegal de drogas e gerando violência,
corrupção, mortes e sonegação de impostos. Quem financia tudo isso não é o
usuário que compra, mas o Estado que, por meio da omissão e proibição, abre
caminho para todo um sistema sustentado na criminalidade. Os riscos e danos
crescem também pelo fato de não ser possivel uma conscientização do uso correto
de um produto ilícito.
Com a descriminalização todo o mercado poderia ser regulado,
com controle de qualidade, arrecadação de impostos e sem resquícios violentos
no processo de produção e comercialização. A arrecadação de impostos merece
especial atenção, pois estes podem ser revertidos para a saúde e educação
públicas. Além de aumentar essa arrecadação, reduzem-se os custos com
policiamento e sistema penal, o que pode resultar em ainda mais políticas
públicas para assegurar direitos sociais.
Sobre o controle, vejamos o exemplo da Holanda, onde é
permitida a venda de Cannabis em
lojas que seguirem as seguintes regras: não pode haver propaganda, venda de
drogas pesadas, venda para menores de 18 anos, transtorno público e
comercialização de mais de 5 gramas por compra, além de ser proibida a venda de
bebidas alcoólicas no estabelecimento, não se poder estocar mais do que 500
gramas e, em algumas cidades, a obrigatoriedade de estas lojas estarem a uma
distância mínima de escolas e da fronteira. Muitos dos temores daqueles que
condenam o uso da maconha são resolvidos com medidas nesse sentido da regulação.
Ao proibir, desconsideramos também os efeitos terapêuticos
que a maconha pode ter, lembrando que o Brasil admite em tese seu uso para fins
medicinais, científicos e uso ritualístico-religioso:
Art. 2o
Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio,
a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam
ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal
ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações
Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso
estritamente ritualístico-religioso.
Parágrafo
único. Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos
vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais
ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização,
respeitadas as ressalvas supramencionadas.[1]
Outro argumento recorrente é de que a maconha é porta de
entrada para outras drogas mais nocivas. Ideia falsa. A porta de entrada é a
condenação à ilegalidade e ao mercado obscuro, caso contrário, procuraríamos
drogas com características psicotrópicas semelhantes. O perfil psicotrópico da
maconha (psicodisléptica, que causam, entre outros, alucinações) não se assemelha,
por exemplo, à cocaína e cafeína, que são drogas psicoanaléptica (estimulantes,
que afastam cansaço e fome). Já o álcool e os inalantes são drogas depressoras,
chamadas psicolépticas.
A defesa é pela liberdade: de pensar e
agir.
É preciso deixar claro que a ideia
deste artigo não é defender o uso de drogas, mas racionalizar uma atividade
intrínseca às sociedades, utilizando-se de critérios de saúde, segurança e
economia públicas. Os efeitos nocivos das diversas drogas não podem ser
desconsiderados; a produção e o consumo devem ser regulados; as propagandas de
bebidas alcoólicas devem ser repensadas e restringidas (que incentivam o
consumo desta droga e ainda contribuem para a disseminação de práticas sexistas
e machistas); as políticas públicas de prevenção e promoção de saúde devem ser
efetivas e atingir verdadeiramente seus usuários. Do ponto de vista do governo,
é possível realizar um controle sanitário eficiente ao se legalizar a maconha?
Temos (ou podem ser criados) programas de saúde que tenham resultados
satisfatórios para o tratamento da dependência, sem estigmatização ou violação
de direitos?
Enfim, legalizar não é banalizar, mas sim encarar o problema
de maneira mais eficaz e segura possível. Ficam postas as questões de como é
possível fazer isso e como a sociedade precisa se transformar culturalmente,
sempre tendo em vistas as condições e realidades sociais e culturais de cada
localidade.
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