Texto apresentado na aula do dia 10/04/12
Por Yuri Rodrigues de Alencar e Renato
Garcia Sanches de Souza
A violência
domestica é um tema discutido com fervor pela sociedade brasileira e pela
cúpula jurídica do país durante os últimos anos, principalmente devido ao
advento da lei 11340/06 (Lei Maria da Penha) e seus efeitos materiais e
processuais no ordenamento brasileiro. Nessa seara de inúmeras controvérsias de
aplicação da lei e do seu alcance de aplicação nas relações familiares, surge a
dúvida se será aplicado os dispositivos dessa norma caso seja relatado a
agressão entre mulheres nas relações familiares, ou mesmo quando o alvo das
agressões sejam transexuais ou travestis e se é possível aplicar a lei em tais
casos sem estar desrespeitando princípios penais e constitucionais.
O art. 1 da lei Maria da Penha que
busca coibir e prevenir a violência domestica e familiar contra a mulher e seu
artigo 5º do mesmo dispositivo enunciam que as relações pessoais serão punidas
caso haja agressões independente de orientação sexual da mulher e que resulte
de qualquer ação ou omissão que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual
ou psicológico e dano moral e patrimonial. Dessa maneira esse será o principal
ponto do nosso questionamento que gira na esfera de não diferenciação sexual da
mulher e suas várias manifestações. A dúvida seria se tal lei dá espaço para
que seja aplicada também em relações lesbianas, e se ela também dá espaço para
a aplicabilidade perante agressões contra transexuais, como em decisões
aplicadas em alguns tribunais do nosso país como da Transexual que sofreu maus tratos por parte do parceiro e que
conseguiu o direito à aplicação da Lei Maria da Penha na decisão da juíza Ana
Claudia Magalhães, da 1ª Vara Criminal de Anápolis, que manteve o acusado na
prisão e o proibiu, quando em liberdade, de estar a menos de mil metros da
ofendida e de seus familiares.
Deve-se remeter a literatura da
medicina e as resoluções dos conselhos federais e regionais a fim de chegarmos
a alguma conclusão sobre a inclusão ou não e quais serão os critérios que
deverão ser utilizados pelo judiciário na analise dos fatos e questões que
chegam e chegarão aos juízes caso cheguem demandas similares na esfera
jurídica. O estudo histórico do porquê da criação da lei nos ajuda a entender
qual será sua esfera de atuação, ou seja, devemos entender a utilidade da
criação desse dispositivo para não criar crimes e praticas processuais que
desvirtuam o sentido original da lei.
2 Gênero
usado como forma de expandir a lei
Quando falamos em opção sexual,
geralmente a sociedade associa ao sexo de nascimento e das expectativas sociais
esperadas para as pessoas que nascem com determinado órgão genital. Entretanto,
a fim da ampliação da discussão e dos efeitos no ordenamento jurídico, deve-se
rebater tal pensamento e procurar explicar por que transexuais, travestis e
outras pessoas que sintam socialmente como uma pessoa pertencente ao sexo
feminino devem ser abarcadas pela lei Maria da Penha.
O conceito de gênero é derivado de
uma construção do campo legal, antropológico e social o qual relaciona a
condição da pessoa, como um ser humano, inserida na sociedade e que experimenta
e vivencia inúmeras situações as quais fazem optar por um grupo ou forma de
manifestação sexual a despeito do sexo de nascimento. Embora algumas pessoas
tenham nascido com determinado sexo, não se sentem socialmente e
psicologicamente tranquilas quanto a sua condição sexual biológica. Dessa
forma, há homens que estão totalmente inseridos no universo feminino, apesar de
terem nascido com órgãos sexuais masculinos.
Na hora da decisão, os juízes se
deparam com casos nos quais, ainda que a vítima tenha determinado sexo, tal
fato deve ser ignorado pelo fato de tal pessoa pertence a um gênero diferente.
Os vários estudos tentam diferenciar as inúmeras manifestações da sexualidade;
dessa maneira, a transexual se distingue e se diferencia dos homossexuais e das
travestis. A travesti usa roupas femininas e o faz devido à satisfação
emocional que esse agir lhe traz, diferente do homossexual que se veste como
homem. Já a transexual veste roupas femininas porque é uma mulher e quer ser
desejada e socialmente aceita como tal. Em decisão recente aplicando a lei
somente para transexuais, a juíza Ana Claudia Magalhães,
da 1ª Vara Criminal de Anápolis, salientou que seria possível o uso dos
dispositivos levando-se em consideração a condição de mulher da vítima perante
a sociedade, a despeito do sexo do seu nascimento, e frisou que o termo
"mulher" pode se referir tanto ao sexo feminino, quanto ao gênero
feminino, o sexo é determinado quando uma pessoa nasce, mas o gênero é definido
ao longo da vida. Logo, não teria sentido sancionar uma lei que tivesse como
objetivo a proteção apenas de um determinado sexo biológico. De gênero
entende-se que se refere às características sociais, culturais e políticas
impostas a homens e mulheres e não às diferenças biológicas entre homens e
mulheres. Desse modo, a violência de gênero não ocorre apenas de homem contra
mulher, mas pode ser perpetrada também de homem contra homem ou de mulher
contra mulher.
A interessante decisão da magistrada
gerou inúmeras discussões no mundo jurídico quanto ao alcance de tal decisão e
sua própria constitucionalidade. Tal mecanismo foi criado para coibir a
violência domestica do homem (machista), biologicamente concebido, contra a
mulher na relação clássica de homem e mulher, ou seja, a relação historicamente
esperada e aceita pela maioria da população. Aqui devemos ter a preocupação em
não nos atermos ao passado e sempre aproveitarmos as novas situações
socialmente aceitas na atualidade, a fim de ampliar os mecanismos de proteção
às pessoas e não restringir a um grupo biologicamente concebido. É de
conhecimento geral que a lei foi impulsionada pela história da biofarmacêutica
Maria da Penha, que ficou paraplégica devido às agressões de seu marido e lutou
por vários anos para que esse fosse punido. Porém, no âmbito constitucional,
baseado no ponto de vista de gênero, não se podem criar leis diferenciando
mulheres nascidas com órgãos sexuais femininos de mulheres que tornam-se do
sexo feminino durante sua vida, ou seja, haveria uma explícita desobediência ao
princípio da igualdade nesse dispositivo. Quanto ao gênero, a mulher não nasce
mulher torna-se mulher na interação social e histórica, assim o conceito de
gênero se refere apenas às pessoas e às relações entre os seres humanos.
Assim, segundo essa visão,
poderíamos concluir que, na esfera da lei, será possível caracterizar tanto os
transexuais quanto outros homossexuais, caso seja aplicado a lei Maria da Penha
para pessoas nascidas com o sexo masculino e que sintam-se pertencentes ao
gênero feminino ao longo de sua vida .
3 Contexto
histórico e intencionalidade da lei
Porém, diferentemente da última
perspectiva, também há uma preocupação com a possibilidade de desvirtuar o
sentido inicial inspirador da criação da lei Maria da Penha. Tal motivo remete
à tradição machista de que homem, ao espancar ou estuprar sua mulher ou
namorada, estaria no seu pleno direito concedido pela relação instituída social
e juridicamente: a lei foi criada justamente para combater essa perspectiva.
A dúvida da aplicabilidade dessa lei
em casos excepcionais seria, então, se o sentido da mesma estaria sendo
perdido, visto que lesão corporal e estupro ainda são práticas consideradas
criminosas pelo ordenamento – as penas para esses crimes só não têm o rigor
adotado no enquadramento perante à Lei 11340/06 pelo motivo de esta última
funcionar como uma ação negativa à prática social machista.
4 Aplicabilidade
no caso concreto
No final das contas, não há um único
ponto de partida correto para a aplicação da lei Maria da Penha em casos
excepcionais: ambos apresentados têm pontos muito relevantes que não podem ser
deixados de lado na aplicação; caso contrário, poderá se chegar a uma decisão
injusta ou incoerente.
A conclusão chegada é de que apenas o caso concreto pode dar a resposta
sobre a aplicabilidade da lei. É preciso uma avaliação minuciosa de todos os
fatos pelo juiz, a fim de se chegar a uma decisão justa e coerente, capaz de
manter íntegra a dignidade da pessoa humana ao mesmo tempo em que garante a
segurança e a coesão do Ordenamento.
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