Por Bruno Carvalho Tavares e Vitor Coelho
Um dos problemas mais sérios
enfrentados atualmente pela população brasileira é a baixa qualidade dos
sistemas de saúde e a desarticulação entre as instituições públicas e privadas,
o que acarreta escassez de medicamentos e equipamentos hospitalares. O acesso a
bons serviços de saúde é ainda inexistente para milhões de brasileiros e muitos
se obrigam a passar por situações degradantes e extremas mesmo para tratar de
problemas corriqueiros e simples.
Garantida pela Constituição de 1988,
a saúde é direito de todos e dever do Estado. Garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença, de outros agravos
e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação. Direito que nasceu levando em conta a tradição e as
demandas dos movimentos sanitaristas então vigentes.
No entanto, após a confirmação na
Carta Magna, as ações judiciais firmadas pela busca de
direitos levaram à dicotomia entre privilegiar o indivíduo ou o coletivo, e ao
dilema enfrentado pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), onde a participação
do judiciário, fiscalizando, significa o combate a possíveis fraudes e, ao
mesmo tempo, ao excesso de ordens judiciais, podendo dificultar a
universalidade da saúde.
O Sistema Único de
Saúde - SUS - criado para integrar uma rede regionalizada e hierarquizada que
constitui um sistema único, e que garantiu o direito do sistema privado de complementar,
na saúde, o sistema público mediante contrato ou convênio, foi organizada da
seguinte forma: I -
descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento
integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços
assistenciais e III - participação da comunidade.
Contudo, a criação
de órgãos de fiscalização pelo Estado, entre eles o principal órgão regulador e
fiscalizador do sistema de saúde, a Agência Nacional de Saúde – ANS, e a
criação da lei Nº 9.656/98 (lei que regulamenta os contratos fixados pelas
empresas privadas de saúde, com responsabilidade da ANS em definir as
diretrizes a serem seguidas e com a garantia de que o direito dos usuários
teriam preponderância e os direitos à saúde maior efetividade) levaram o SUS a
uma limitação dos procedimentos, limites como os que fazem os usuários a usufruírem
do tratamento apenas no decorrer de um período determinado, como por exemplo,
um portador de câncer teria uma determinada quantia de radioterapia ou
quimioterapia por ano, ou ainda o paciente com necessidade de atendimento
ambulacral, cuja recuperação deveria se dar em 12 horas, sob pena de despejo
caso o paciente não fosse capaz de arcar com os gastos do leito. Exemplo claro
de que o excesso burocrático e regulatório prejudica a qualidade do sistema
público de saúde.
Outra
responsabilidade do SUS é a distribuição de medicamentos, portaria definida em
1998 que garantiu a Política Nacional de Medicamentos. A Lei nº 8.080/90, em
seu artigo 6º, estabelece como campo de atuação do Sistema Único de Saúde - SUS
a “formulação da política de medicamentos (...) de interesse para a saúde
(...)”.
O
SUS é regido por princípios universalistas e não discrimina o atendimento
segundo a classe econômica dos usuários, seguindo preceitos
como o de que o direito à saúde deve ser objeto de garantia a um sistema
igualitário, sem distinção de classe, gênero ou qualquer outro fator de seleção
e que dê proporções iguais ao acesso nos mais altos níveis de saúde. Por ser um
sistema único e universal, está dentro de suas determinações despesas de
medicamentos e tratamentos, mas uma gestão complicada e uma administração
desordenada acabaram por transformar o sistema publico de atendimento numa
estrutura ruim de assistência às classes mais pobres ou a aqueles incapazes de
pagar por planos de saúde privados melhores. No entanto, mesmo as classes mais
altas podem ser afetadas por essa ineficiência, pois muitos convênios privados,
mediante contratos com o governo, não cobrem totalmente as necessidades do
cliente, que se vê obrigado a obtê-lo na rede pública. Consequentemente, a
pressão para recorrer no judiciário aumenta.
Em meio a esse
cenário, tornou-se prática constante o recurso nos tribunais para obter
tratamentos médicos de difícil acesso nas redes publica. A judicialização das
políticas públicas de saúde cresceu vertiginosamente nos últimos 10 anos e a
busca do auxilio judicial para resolução de questões a priori da
responsabilidade da administração local (e não do judiciário) trouxe algumas consequências
degradantes para o próprio direito a saúde.
A judicialização
aparentemente funciona como uma válvula de escape para os problemas, mas não os
resolve completamente e ainda gera outros. Logicamente, ela possui um papel
fundamental na segurança de direitos básicos e em alguns casos é realmente
necessária para se estabelecer justiça. O argumento da proteção da vida humana que
sempre seduz facilmente o julgamento, consequentemente, perdendo muito do seu
valor jurídico por um apelo emocional forte, e mesmo as normas administrativas
do SUS (Sistema Único de Saúde) pouca influencia exercem, o indivíduo
simplesmente afirma que não tem condições de comprar o remédio ou tratamento
especificado, mas sem ele sua condição física corre sérios riscos. Com isso o
excesso de demanda e a possibilidade de que o paciente morrerá sem o referido
medicamento potencializa um grande número de causas favoráveis à distribuição.
Existe uma
grande margem de sucesso nos tribunais usando esse argumento, mesmo quando o
próprio remédio é de demasiado custoso e poder-se-ia substituí-lo por outro
muito mais barato. Exemplos claros disso ocorrem quando o judiciário determina
a compra de medicamentos caríssimos (muitos com valor superior a 15 mil reais),
sem registro na ANVISA e sem licitação. Simplesmente força-se a Secretária de
Saúde a comprá-los em estado de urgência, fora de preço de mercado. Nos casos
em que o remédio é padronizado, sua estocagem é comum, e, portanto não chega a
custar tanto. Porém, para aqueles não padronizados, o preço pode ser elevado se
(como geralmente ocorre) apenas um laboratório produzi-los, exercendo um
monopólio que o permite determinar um custo mais alto.
Dado o teor emergencial dessa
compra, recorre-se ao uso de verbas provenientes de um fundo reservado para situações
extraordinárias, um “suprimento de fundos”, causando uma transferência de
dinheiro público de determinados projetos também importantes para a sociedade
para o cumprimento da decisão do judiciário.
Contudo, ainda assim os medicamentos essenciais não estão ao alcance de toda a sociedade,
considerando que os medicamentos de alto custo não ocupam mais o papel
secundário que se imaginava (Introdução
Crítica ao direito à saúde – 4º volume da série O direito achado na rua). Há
ainda um problema maior, onde muitas demandas são por medicamentos que ainda
estão em fase de teste.
Outro forte
argumento defende que a judicialização da saúde acarreta em um privilégio das
camadas sociais com maiores rendas e com condições de pagar pelo medicamento,
pois estimativas afirmam que a maior parte dos processos é pago a advogados
particulares e que o custo médio de uma ação, para aquisição de medicamentos,
reside em uma faixa bastante superior a quantia disponível à maioria da
população brasileira.
Porém, na elaboração
de tais estimativas, dados como a renda dos indivíduos não foram contabilizadas,
pois nos autos do Ministério da Saúde - MS; base da consulta; não consta tal
informação. Por isso, o resultado seguiu uma linha secundaria aonde a
qualificação da renda foi dada pela comparação da capacidade de contratar um
advogado privado e o nível social desta pessoa, linha refutável, pois há casos
em que o governo firma vínculos com a categoria de advogados e uma ação pode
chegar ao valor de R$ 238,00 reais, caso ocorrido em São Paulo em 1997. Os
autos do MS também não estipulam quem são as partes responsáveis pelos
honorários dos advogados, podendo haver vários agentes interessados, como indústrias
farmacêuticas, que possuam motivos econômicos para arcar com tais gastos.
Um estudo feito
pelo professor de sociologia da UnB, Marcelo Medeiros, sobre a distribuição de medicamentos para
mucopolissacaridose mostrou a grande concentração de alguns
advogados em um número elevado de processos e em uma região concentrada, o que
mostra uma rede com um relativo interesse para a distribuição do referido
medicamento pelo sistema único, o que desafia a perspectiva de que só a elite é
passível de obter defesa jurídica. Apesar de práticas como estas levarem a uma
configuração excessiva, nos tribunais, de defesa dos grandes laboratórios, como
forma de lobby, tal atividade acaba dando acesso a advogados privados para
indivíduos de menor renda, reduzindo gastos com processos.
Portanto, se o SUS fosse um sistema focalizado seria adequado entender
que, o atendimento de qualquer indivíduo que não aquele em piores condições
feriria a equidade prevista em sua formação. Para
um julgamento da justiça de uma demanda em saúde não importa a origem de classe
do indivíduo, mas sim a avaliação de quais demandas protegem necessidades de
saúde não satisfeitas.
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