sábado, 7 de julho de 2012

O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE


Por Bruno Carvalho Tavares e Vitor Coelho 


Um dos problemas mais sérios enfrentados atualmente pela população brasileira é a baixa qualidade dos sistemas de saúde e a desarticulação entre as instituições públicas e privadas, o que acarreta escassez de medicamentos e equipamentos hospitalares. O acesso a bons serviços de saúde é ainda inexistente para milhões de brasileiros e muitos se obrigam a passar por situações degradantes e extremas mesmo para tratar de problemas corriqueiros e simples.
Garantida pela Constituição de 1988, a saúde é direito de todos e dever do Estado. Garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença, de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Direito que nasceu levando em conta a tradição e as demandas dos movimentos sanitaristas então vigentes.
No entanto, após a confirmação na Carta Magna, as ações judiciais firmadas pela busca de direitos levaram à dicotomia entre privilegiar o indivíduo ou o coletivo, e ao dilema enfrentado pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), onde a participação do judiciário, fiscalizando, significa o combate a possíveis fraudes e, ao mesmo tempo, ao excesso de ordens judiciais, podendo dificultar a universalidade da saúde.
O Sistema Único de Saúde - SUS - criado para integrar uma rede regionalizada e hierarquizada que constitui um sistema único, e que garantiu o direito do sistema privado de complementar, na saúde, o sistema público mediante contrato ou convênio, foi organizada da seguinte forma: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais e III - participação da comunidade.
Contudo, a criação de órgãos de fiscalização pelo Estado, entre eles o principal órgão regulador e fiscalizador do sistema de saúde, a Agência Nacional de Saúde – ANS, e a criação da lei Nº 9.656/98 (lei que regulamenta os contratos fixados pelas empresas privadas de saúde, com responsabilidade da ANS em definir as diretrizes a serem seguidas e com a garantia de que o direito dos usuários teriam preponderância e os direitos à saúde maior efetividade) levaram o SUS a uma limitação dos procedimentos, limites como os que fazem os usuários a usufruírem do tratamento apenas no decorrer de um período determinado, como por exemplo, um portador de câncer teria uma determinada quantia de radioterapia ou quimioterapia por ano, ou ainda o paciente com necessidade de atendimento ambulacral, cuja recuperação deveria se dar em 12 horas, sob pena de despejo caso o paciente não fosse capaz de arcar com os gastos do leito. Exemplo claro de que o excesso burocrático e regulatório prejudica a qualidade do sistema público de saúde.
Outra responsabilidade do SUS é a distribuição de medicamentos, portaria definida em 1998 que garantiu a Política Nacional de Medicamentos. A Lei nº 8.080/90, em seu artigo 6º, estabelece como campo de atuação do Sistema Único de Saúde - SUS a “formulação da política de medicamentos (...) de interesse para a saúde (...)”.
O SUS é regido por princípios universalistas e não discrimina o atendimento segundo a classe econômica dos usuários, seguindo preceitos como o de que o direito à saúde deve ser objeto de garantia a um sistema igualitário, sem distinção de classe, gênero ou qualquer outro fator de seleção e que dê proporções iguais ao acesso nos mais altos níveis de saúde. Por ser um sistema único e universal, está dentro de suas determinações despesas de medicamentos e tratamentos, mas uma gestão complicada e uma administração desordenada acabaram por transformar o sistema publico de atendimento numa estrutura ruim de assistência às classes mais pobres ou a aqueles incapazes de pagar por planos de saúde privados melhores. No entanto, mesmo as classes mais altas podem ser afetadas por essa ineficiência, pois muitos convênios privados, mediante contratos com o governo, não cobrem totalmente as necessidades do cliente, que se vê obrigado a obtê-lo na rede pública. Consequentemente, a pressão para recorrer no judiciário aumenta.

Em meio a esse cenário, tornou-se prática constante o recurso nos tribunais para obter tratamentos médicos de difícil acesso nas redes publica. A judicialização das políticas públicas de saúde cresceu vertiginosamente nos últimos 10 anos e a busca do auxilio judicial para resolução de questões a priori da responsabilidade da administração local (e não do judiciário) trouxe algumas consequências degradantes para o próprio direito a saúde.
A judicialização aparentemente funciona como uma válvula de escape para os problemas, mas não os resolve completamente e ainda gera outros. Logicamente, ela possui um papel fundamental na segurança de direitos básicos e em alguns casos é realmente necessária para se estabelecer justiça. O argumento da proteção da vida humana que sempre seduz facilmente o julgamento, consequentemente, perdendo muito do seu valor jurídico por um apelo emocional forte, e mesmo as normas administrativas do SUS (Sistema Único de Saúde) pouca influencia exercem, o indivíduo simplesmente afirma que não tem condições de comprar o remédio ou tratamento especificado, mas sem ele sua condição física corre sérios riscos. Com isso o excesso de demanda e a possibilidade de que o paciente morrerá sem o referido medicamento potencializa um grande número de causas favoráveis à distribuição.
Existe uma grande margem de sucesso nos tribunais usando esse argumento, mesmo quando o próprio remédio é de demasiado custoso e poder-se-ia substituí-lo por outro muito mais barato. Exemplos claros disso ocorrem quando o judiciário determina a compra de medicamentos caríssimos (muitos com valor superior a 15 mil reais), sem registro na ANVISA e sem licitação. Simplesmente força-se a Secretária de Saúde a comprá-los em estado de urgência, fora de preço de mercado. Nos casos em que o remédio é padronizado, sua estocagem é comum, e, portanto não chega a custar tanto. Porém, para aqueles não padronizados, o preço pode ser elevado se (como geralmente ocorre) apenas um laboratório produzi-los, exercendo um monopólio que o permite determinar um custo mais alto.
Dado o teor emergencial dessa compra, recorre-se ao uso de verbas provenientes de um fundo reservado para situações extraordinárias, um “suprimento de fundos”, causando uma transferência de dinheiro público de determinados projetos também importantes para a sociedade para o cumprimento da decisão do judiciário.
Contudo, ainda assim os medicamentos essenciais não estão ao alcance de toda a sociedade, considerando que os medicamentos de alto custo não ocupam mais o papel secundário que se imaginava (Introdução Crítica ao direito à saúde – 4º volume da série O direito achado na rua). Há ainda um problema maior, onde muitas demandas são por medicamentos que ainda estão em fase de teste.
Outro forte argumento defende que a judicialização da saúde acarreta em um privilégio das camadas sociais com maiores rendas e com condições de pagar pelo medicamento, pois estimativas afirmam que a maior parte dos processos é pago a advogados particulares e que o custo médio de uma ação, para aquisição de medicamentos, reside em uma faixa bastante superior a quantia disponível à maioria da população brasileira.
Porém, na elaboração de tais estimativas, dados como a renda dos indivíduos não foram contabilizadas, pois nos autos do Ministério da Saúde - MS; base da consulta; não consta tal informação. Por isso, o resultado seguiu uma linha secundaria aonde a qualificação da renda foi dada pela comparação da capacidade de contratar um advogado privado e o nível social desta pessoa, linha refutável, pois há casos em que o governo firma vínculos com a categoria de advogados e uma ação pode chegar ao valor de R$ 238,00 reais, caso ocorrido em São Paulo em 1997. Os autos do MS também não estipulam quem são as partes responsáveis pelos honorários dos advogados, podendo haver vários agentes interessados, como indústrias farmacêuticas, que possuam motivos econômicos para arcar com tais gastos.
Um estudo feito pelo professor de sociologia da UnB, Marcelo Medeiros, sobre a distribuição de medicamentos para mucopolissacaridose mostrou a grande concentração de alguns advogados em um número elevado de processos e em uma região concentrada, o que mostra uma rede com um relativo interesse para a distribuição do referido medicamento pelo sistema único, o que desafia a perspectiva de que só a elite é passível de obter defesa jurídica. Apesar de práticas como estas levarem a uma configuração excessiva, nos tribunais, de defesa dos grandes laboratórios, como forma de lobby, tal atividade acaba dando acesso a advogados privados para indivíduos de menor renda, reduzindo gastos com processos.
Portanto, se o SUS fosse um sistema focalizado seria adequado entender que, o atendimento de qualquer indivíduo que não aquele em piores condições feriria a equidade prevista em sua formação. Para um julgamento da justiça de uma demanda em saúde não importa a origem de classe do indivíduo, mas sim a avaliação de quais demandas protegem necessidades de saúde não satisfeitas.

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