sábado, 7 de julho de 2012

Autismo: um problema também social


Por Natalia Guedes


Alguma vez você já presenciou uma situação em que alguém disse que determinada pessoa era autista, por ter comportamento diferente, por se isolar, por não falar com ninguém? Alguma vez VOCÊ já chamou alguém de autista por este ou outros motivos? Mas o que é o autismo? Quais são os direitos das pessoas que o têm? Vários preconceitos e tabus a respeito dele precisam ser desconstruídos para que a dignidade das pessoas com autismo seja alcançada.
No dia 21 de janeiro de 2008, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu, unanimemente, designar o dia 2 de abril como o “World Autism Awareness Day” (A/RES/62/139)[1], que em português é conhecido como o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, a ser observado todos os anos, a partir de 2008.
Essa decisão da ONU se justifica pela preocupação com a alta taxa e prevalência do autismo em crianças do mundo todo e pelos consequentes desafios de desenvolvimento, a longo prazo, de cuidados com a saúde, educação, programas de treinamento e intervenção realizados tanto pelos Governos quanto por organizações não-governamentais e o setor privado para essas pessoas. É igualmente importante mencionar o tremendo impacto que o autismo provoca nas crianças, suas famílias, comunidades e sociedades.[2]
Mas o que é o autismo? Existem variadas definições [3], mas o que, a princípio, deve-se considerar é que ele é uma disfunção global do desenvolvimento, crônica e incapacitante, que compromete o desenvolvimento normal de uma criança e se manifesta tipicamente antes dos três anos de idade. Caracteriza-se por lesar e diminuir o ritmo do desenvolvimento psiconeurológico, social e linguístico. Estas crianças também podem apresentar reações anormais a sensações diversas como ouvir, ver, tocar, sentir, equilibrar e degustar. A linguagem normalmente é atrasada ou não se manifesta, além de se relacionarem com pessoas, objetos ou eventos de uma maneira não usual. [4].
Apesar dessas características gerais, cada pessoa com autismo é única e diferente. Grosso modo, é como se existissem níveis de desenvolvimento, em que determinada pessoa é mais comprometida ou não que a outra, de modo que existem autistas que falam ou não, que precisam tomar remédio para dormir ou não, que conseguem ir para escolas regulares ou não etc. Isso porque o autismo afeta os indivíduos em diferentes e variadas maneiras. Até hoje não é conhecida nenhuma causa para o autismo.
Em 02/04/2010, o Secretário Geral da ONU, Ban Ki-moon, fez um discurso no qual estimou que há, aproximadamente, apesar das estimativas variarem, 70 milhões de pessoas com autismo no mundo.  Ainda, segundo dados de 2008, revelados pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (Centers for Disease Control and Prevention) do Governo dos Estados Unidos, há, naquele país, uma criança (de oito anos de idade) com Transtorno do Espectro Autista (TEA) para cada 88 crianças da mesma idade. Houve um aumento de 58,4 % de incidência de TEA em relação a dados do ano de 2002. Lembrando que o TEA engloba o Autismo, a Síndrome de Asperger e o Transtorno Global do Desenvolvimento Sem Outra Especificação, subgrupos dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento.
Não existem pesquisas no Brasil que definam a incidência de autismo no país até o momento. O que há é uma estimativa, que corresponde a aproximadamente 2 milhões de pessoas atingidas pelo autismo na população. Essa lacuna de dados estatísticos serve, inicialmente, para demonstrar a falta de estrutura para lidar com a questão das pessoas com autismo na realidade brasileira. Trata-se da falta de acesso por essas pessoas a direitos básicos, como, por exemplo, saúde (diagnóstico, tratamentos, entre outros), trabalho e educação.
A violação desses direitos pelo Brasil se dá principalmente de duas formas: a) trata-se de uma violação internacional, pois o Brasil está descumprindo normas internacionais das quais é signatário; b) consequentemente,  nesse caso,  trata-se também de uma violação constitucional. A conclusão anterior é facilmente explicada: em 2006, a Assembleia Geral da ONU adotou a Convenção Internacional Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Convention on the Rights of Persons with Disabilities), que foi assinada e ratificada pelo Estado brasileiro, sendo formalmente confirmada e promulgada, seguindo-se os procedimentos estabelecidos pelo § 3º, art. 5º da Constituição Federal, através do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009 [5].
Pode-se questionar se o autismo é amparado pelo Tratado internacional em questão, pois ele fala sobre “pessoas com deficiência”, definição em que o autismo não se enquadra, por ser um transtorno. Ressalta-se, contudo, que, segundo entendimento da ONU, o autismo pode ser considerado como deficiência [6], pois as pessoas acometidas por ele têm impedimentos de longo prazo que podem prejudicar ou impedir sua participação plena e efetiva na socie­dade, em igualdade de condições com as demais pessoas (art. 1º da Convenção).
Haja vista que a referida Convenção foi promulgada de acordo com o citado dispositivo constitucional, tem-se que ela tem status de Emenda Constitucional. Portanto, o Estado e a sociedade brasileiros  têm  o dever internacional e constitucional de efetivar e defender os direitos estabelecidos pela Convenção, tanto para as pessoas com deficiência, quanto para as pessoas com autismo.
Devido às reivindicações e atuação dos familiares e amigos de pessoas com autismo, dialogando entre si e com as autoridades governamentais, dando visibilidade ao problema do autismo, é possível visualizar que já existem iniciativas importantíssimas, que buscam melhorar as vidas dessas pessoas e dar a elas acesso a direitos que são seus, como de quaisquer cidadãos.
Tramita atualmente um Projeto de Lei na Câmara dos Deputados, já aprovado pelo Senado em 15/06/2011, que pretende instituir a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, em âmbito nacional. Esse PL, no art. 3º, estabelece os seguintes direito às pessoas com transtorno do espectro autista:
I – a vida digna, a integridade física e moral, o livre desenvolvimento da personalidade, a segurança e o lazer;
II – a proteção contra qualquer forma de abuso e exploração;
III – o acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades de saúde, incluindo:
a) o diagnóstico precoce, ainda que não definitivo;
b) o atendimento multiprofissional;
c) a nutrição adequada e a terapia nutricional;
d) os medicamentos;
e) informações que auxiliem no diagnóstico e no tratamento;
IV – o acesso:
a) à educação e ao ensino profissionalizante;
b) à moradia, inclusive à residência protegida;
c) ao mercado de trabalho;
d) à previdência social e à assistência social.[7]

Não perdendo de vista as obrigações internacionais e constitucionais do Estado brasileiro a respeito da defesa dos direitos lato sensu das pessoas com autismo, destaca-se ainda a Lei nº 4.568, de 16 de maio de 2011, do Distrito Federal. Essa Lei “institui a obrigatoriedade de o Poder Executivo proporcionar tratamento especializado, educação e assistência específicas a todos os autistas, independentemente de idade, no âmbito do Distrito Federal”.
Essa Lei é um marco importante para a luta por direitos humanos no âmbito do Distrito Federal pelas famílias das pessoas com autismo, que já se organizam socialmente, por exemplo, em associações, como a Associação dos Amigos dos Autistas DF (AMA-DF) e a Associação Terapêutica e Educacional para Crianças Autistas (Asteca), com o objetivo primordial de tentar melhorar, em todos os aspectos, a qualidade de vida das pessoas com autismo.
Apesar de não deixar de considerar todos os direitos que os autistas possuem, darei nesse artigo foco ao acesso à educação por essas pessoas, especificamente para crianças e jovens. A educação ampla, irrestrita e libertadora é um direito fundamental que deve ser defendido e efetivado tanto pela sociedade como pelo Estado para todos.
Especificamente para os autistas, por suas características peculiares, como a dificuldade de comunicação, a estereotipia presente em seus movimentos, as variações comportamentais, entre outras, é preciso que o acesso à educação seja uma realidade, de forma que suas necessidades especiais sejam atendidas. Por meio da educação, em conjunto com os tratamentos médicos a que eles precisam se submeter, vislumbra-se uma possibilidade de remediar suas dificuldades de socialização, de forma que eles sejam efetivamente incluídos na sociedade como cidadãos como qualquer outro, mesmo com suas limitações.
A educação é um dos mecanismos responsáveis por alcançar a efetivação de princípios como o respeito pela dignidade inerente, a independência da pessoa (como a liberdade de fazer as próprias escolhas e a autonomia individual), a não discriminação, a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade, o respeito pela diferença, a igualdade de oportunidades, a acessi­bilidade e o respeito pelas capacidades em desenvolvimento de crianças com autismo.
É importante deixar claro que as pessoas com autismo, além de enfrentarem diariamente desafios advindos de sua condição, sofrem com as atitudes negativas da sociedade, que cria barreiras que dificultam seu pleno acesso a ela e as discriminam. A ONU, observando essa situação, foi muito feliz na definição que dá de deficiência, no art. 1º da Convenção:

“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.” [8] (grifei)

Percebe-se que a própria sociedade, discriminadora e injusta, injustificadamente cria essas barreiras. Por esse motivo é que se faz essencial que as pessoas tomem ciência do que é o autismo, de quais são as necessidades das pessoas que o têm e, principalmente, de que reconheçam essas pessoas como cidadãos, sujeitos de direitos, que precisam participar da sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.


[1] “The General Assembly [...] 1. Decides to designate 2 April as World Autism Awareness Day, to be observed every year beginning in 2008”. Resolução 62/139 da Assembleia Geral da ONU sobre o “World Autism Awareness Day”, disponível em: http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/62/139.
[2] Resolução 62/139 da ONU.
[3] De relevantes, há: a definição da Austism Society of America (ASA), de 1978; a definição do DSM-IV-TR, de 2002 e; a definição da Organização Mundial da Saúde, dada por meio da Classificação Internacional de Doenças de 2010, que é a mais comumente aceita.
[5] Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. “Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007.”. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm
[6] Mensagem do Secretário Geral da ONU, Ban Ki-moon, para o Dia Mundial da Conscientização do Autismo, em 02 de Abril de 2010. http://www.youtube.com/watch?v=wpsI20cC4q0&feature=player_embedded
[7] Projeto de Lei do Senado nº 168, de 2011. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=99929
[8] “Persons with disabilities include those who have long-term physical, mental, intellectual or sensory impairments which in interaction with various barriers may hinder their full and effective participation in society on an equal basis with others.” Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Disponível em: http://www.un.org/disabilities/convention/conventionfull.shtml

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